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Bye bye Brasil: a última ficha caiu

terça-feira, 13 de Outubro de 2020
Blog do PPDS
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Nurit Bensusan, assessora do ISA e especialista em biodiversidade
“Bye Bye Brasil é o meu sonho sobre isso que se convencionou chamar de realidade brasileira. Ou seja, mais uma modesta versão pessoal, uma das muitas versões possíveis sobre alguns aspectos do que ocorre com o mundo e as pessoas mais próximas de mim. [...] Só que agora a mágica do cinema, o mistério da sua luz, captura um país em transe, onde convivem no mesmo espaço/tempo o moderno e o arcaico, a riqueza e a pobreza, a selva e a poluição, a comédia e a tragédia, numa situação-limite que pode estar anunciando a civilização do século XXI.

Porque, embora o coração tente me dizer que o apocalipse já começou, é preciso acreditar que ele é inevitável e que a soma de cada uma de nossas esperanças será o seu principal bloqueio. Se cada um de nós acreditar firmemente que a autodestruição não é uma fatalidade da história humana, talvez aí comecem a dar certo as mágicas trabalhadas pelos alquimistas dos anos 1960. Talvez aí a ideia brilhe vitoriosa sobre a mesquinhez dos interesses.”

Cacá Diegues, sobre Bye bye Brasil, em 3 de fevereiro de 1980, no Jornal do Brasil, duas semanas antes da estreia do filme

A última ficha caiu e o Brasil segue em transe. De 1980, ano do lançamento do filme Bye bye Brasil, até este espantoso 2020, o país acreditou, desacreditou, somou esperanças, reduziu-se a desilusões, afastou-se do apocalipse e jogou-se na autodestruição. A obra de Cacá Diegues deu aos brasileiros um vislumbre da gigantesca diversidade de formas de viver existente sob esse mesmo parangolé colorido que é o Brasil. Um lugar onde o arcaico esbarra no moderno, o urbano perde-se na floresta, a farsa compete com o fake e onde todo mundo é índio, exceto quem não é.

Um filme dedicado ao povo brasileiro do século XXI. Século que chegou prenhe de esperanças em um país que começava a se reinventar depois da ditadura, que chegou a acreditar que tinha futuro e que ele incluiria todos. Um povo que chega ao fim da segunda década do novo século numa nação onde a cada dia o inadmissível torna-se corriqueiro, o assombro assume cores de normalidade e a desesperança é o pão nosso de cada dia.

Veja abaixo live com Cacá Diegues, Luís Bolognesi e Nurit Bensusan promovida em junho

Sertão e Amazônia esquecidos

Bye bye Brasil conta a trajetória da Caravana Rolidei, composta por dois artistas mambembes, a quem se junta outro casal, que se apresentam em pequenas cidades e vilas do sertão do Nordeste, nos meados década de 1970. Em busca de novos lugares sem televisão (de modo a garantir público para seus shows), seguem para a Amazônia, em direção a Altamira (PA).

O filme mostra os efeitos da integração nacional, preconizada pela ditadura civil militar, inaugurada em 1964 e no poder à época. A obra revela como o sertão e a Amazônia continuavam esquecidos quando o assunto era políticas públicas e melhores condições de vida, mas não quando se tratava de alcançá-los com as imagens do que seria – ou deveria ser – o país, veiculadas pelas novelas na TV. Imagens de uma modernidade limitada e conservadora, americanizada, distante de suas origens. A Caravana Rolidei cruza estradas na Amazônia, encontra índios, garimpeiros e todo tipo de gente em busca de oportunidades, para desembocar em Altamira.

Acoplado a uma canção de Chico Buarque com o mesmo nome, o filme trouxe à baila muitas questões candentes sobre o país - que seguem tão urgentes como eram há 40 anos. O contraste do urbano e do rural no Nordeste; a tela, em suas novas e múltiplas versões, como mesmerizadora maior do povo brasileiro; o eterno sonho de melhorar de vida; a ocupação da Amazônia e o dilema do que o Brasil quer de seus povos indígenas.

De 1980 para cá, parte grande do rural transformou-se em urbano, mas não em cidades, e sim em periferias. Os contrastes que existiam nas distâncias geográficas seguem existindo, aproximados pela dinâmica urbana de centro e periferia, de quem acredita ser elite rica e branca e de quem sabe ser pobre e preto. Cidades inchadas, de onde pessoas escorrem pelas bordas sem direitos, teto ou futuro.

Em um caleidoscópio onde tudo muda a cada momento, mas permanece essencialmente igual, os dilemas da ocupação da Amazônia são idênticos, apesar de haver menos floresta, menos indígenas e menos esperança. O futuro da Amazônia é a mineração, diz um personagem de Bye bye Brasil, mas a frase está na boca de muitos políticos hoje, 40 anos depois. A Altamira do filme, já entulhada pelos caçadores de sonhos da Transamazônica, pode ser contrastada com a Altamira da hidrelétrica de Belo Monte, avolumada de pesadelos, dor, sofrimento e muito mais gente. Mas o contraste é apenas superficial. Se, em algum momento, acreditou-se na floresta e seus povos como arautos de um futuro possível, tal devaneio já foi deixado de lado e a marcha rumo ao fim da floresta e de seus povos está sendo retomada com ardor. Os índios de Bye bye Brasil, deslocados pela Transamazônica, são os índios de hoje, expulsos, desrespeitados, enganados e vilipendiados por Belo Monte, por outros grandes projetos de infraestrutura e pelo descaso com sua sobrevivência em plena pandemia de Covid-19.

Qual Brasil? Qual globalização?

Se a globalização que se revela, até mesmo no Brasil profundo, traz uma certa nostalgia, expressa no filme e na canção, 40 anos depois ela está plasmada tanto nos que encontraram nela ecos para seus sonhos, como para aqueles que ficaram de fora e perseguem um avesso do avesso. O país se traduz em bordas: bordas da floresta, onde os bois encontram os morcegos; bordas das cidades, por onde escorrem sonhos; bordas do Pantanal, onde o fogo destrói a exuberância, e bordas dos abismos que se multiplicam, pelo país afora, como armadilhas sem fim.

Qual é o país do qual Bye bye Brasil se despede? Em parte, talvez, o país subalternizado pela ditadura. Mas possivelmente também vários outros brasis. Um país onde houve espaço para acreditar numa "brasilice", um lugar com características próprias, cuja melhor expressão foi o Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, que abria a possibilidade de pensar um país que invertesse o projeto colonial. Talvez um Brasil onde a Amazônia sequer existia, ou existia como "inferno verde'", como um não lugar, espaço a ser desbravado, conquistado, domado, civilizado, entristecido e acinzentado. Ou ainda, um Brasil onde o colonizador nunca penetra, persistindo no litoral a ver navios e a sonhar bandeiras...

Como um grito primevo que ecoa desde que as caravelas europeias aqui aportaram, o futuro se esvai entre nossos dedos, mais uma vez. Ignoramos possíveis roteiros, distanciamo-nos do transe da Terra, fazemos mapas do grande sertão, escondemos Macunaíma atrás do cortinado e viramos a cara para Xangô. Morremos no ano passado e neste morremos mais.

“Agora a gente vai para Rondônia. Vamos fazer show para índios, eles nunca viram nada parecido: civilização” A fronteira, representada pelo novo destino da Caravana Rolidey, Rondônia, já virou serragem e desilusão. Pouco resta da floresta por lá e os povos indígenas, em contato com a pior faceta dos brancos, seguem por labirintos sem fim.

O Brasil segue por aí... em caravanas rolideis, naqueles que viajam porque precisam, nos que voltam porque amam, nos que desistem de si para serem outros e nos que sempre esperam. Se Bye bye Brasil retratava um Brasil que acabava, ao mesmo tempo que outro nascia, como disse Cacá Diegues, o momento atual também mostra um país que ficou para trás, ao mesmo tempo que um Brasil desconhecido emerge. Afinal, esse país nunca foi para principiantes...

Bye bye Brasil
Cacá Diegues
Direitos Indígenas
Belo Monte
Altamira
Imagens: 
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    Cartaz de Bye Bye Brasil em inglês | Imagem do Youtube


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