Após 17 anos de luta, extrativistas do Rio Jauaperi obtêm vitória com criação de Resex
Wednesday, 06 de June de 2018As 200 famílias extrativistas que vivem às margens dos rios Branco e Jauaperi, nos estados de Roraima e do Amazonas, saíram vitoriosas de uma batalha que já dura 17 anos. Nesta quarta-feira (6) o Ministério do Meio Ambiente oficializou a criação da Reserva Extrativista Baixo Rio Branco Jauaperi em decreto publicado no Diário Oficial, possibilitando o fim de um ciclo de conflitos e da exploração ilegal dos recursos da região.
Além da Resex Jauaperi, o governo também publicou os decretos de criação de duas unidades de conservação na Caatinga baiana: a Área de Proteção Ambiental (APA) da Ararinha Azul e o Refúgio da Vida Silvestre (Revis ou RVS).
A Reserva Extrativista é uma categoria de Unidade de Conservação específica para o território de populações extrativistas tradicionais. Seu objetivo básico é a conservação dos meios de vida e da cultura dessas populações, que mantém a biodiversidade local e a floresta e cujo modo de vida está fundamentado na pesca e roças de baixo impacto e na coleta de castanha, copaíba e fibras.
No caso da Resex Jauaperi, as famílias estavam ameaçadas pela pesca ilegal de peixes e quelônios (tartarugas), tentativa de grilagem e de expulsão dos moradores. "A região é rica em produtos da floresta e tem muito peixe nos rios e lagos, gerando disputas entre as comunidades e os empresários de Manaus. Agora com a criação da Resex os comunitários vão ter mais força para defender os seus recursos, o seu lugar e o seu jeito de viver", afirma Ciro Campos, pesquisador do Instituto Socioambiental (ISA).
“O Baixo rio Branco é uma importante área de vida de tartarugas da Amazônia (Podocnemis expansa) e por conta disso há muitos conflitos envolvendo sua caça e comércio ilegal. Também há uma pressão forte da pesca comercial predatória sobre o rio Jauaperi que acabou gerando uma série de problemas para as comunidades que aí vivem”, explica Carlos Durigan, Diretor da WCS Brasil.
O pleito pela criação da UC se iniciou em 2001, com uma solicitação das próprias famílias que vivem na área. Ao longo desses 17 anos, o processo contou com uma sequência de disputas judiciais e com a oposição do próprio governo de Roraima (veja box). Segundo Durigan, políticos locais, sobretudo do estado de Roraima, atuaram fortemente para barrar a criação da UC, desconsiderando a vontade das comunidades.
“Chegamos a vivenciar problemas sérios de pressão política e inúmeras tentativas de intimidação e resistência que incluíram ações como a criação de uma APA Estadual incidindo sobre a área e mesmo disseminação de informações falsas de que após a criação da RESEX famílias seriam retiradas da área ou mesmo outras limitações que a criação acarretaria”, afirma o geógrafo.
O decreto publicado nesta quarta-feira estabelece uma área de 581.173 hectares, destacando-se três áreas especiais em trechos do território tradicional dos índios Waimiri Atroari: a zona de preservação, que compreende a faixa de 2 km de largura ao longo dos limites da Resex com a Terra Indígena Waimiri Atroari e onde não são permitidas a ocupação e a utilização direta ou indireta dos recursos naturais; a zona de uso restrito, cuja utilização dos recursos só é permitida após acordo com a comunidade Waimiri (área do Mahoa, 40.565 hectares); e a zona de conservação, na região do Igarapé Xipariña, com 56.747 hectares, na qual não são permitidas a ocupação e a realização de qualquer atividade de uso direto dos recursos naturais ali abrangidos, exceto quanto às atividades de recreação e turismo, desde que sejam definidas no plano de manejo (veja no mapa).
O decreto menciona ainda a possibilidade da Fundação Nacional do Índio (Funai) a continuar os estudos para a revisão dos limites da Terra Indígena Waimiri-Atroari e os levantamentos da área de ocupação dos grupos indígenas isolados nos limites da Resex . Além disso, fica garantida a vaga para um representante da Funai e para um representante da comunidade Waimiri-Atroari no Comitê Gestor da Reserva. Em 2014, a Funai constituiu um grupo de trabalho para revisão dos limites da Terra, uma vez que ela foi oficialmente reconhecida em área menor que o território original dos Waimiri Atroari.
A demora de uma definição por parte do governo federal impactou diretamente a vida das comunidades que habitam a Resex. Nesses 17 anos, as disputas por recursos e por território se intensificaram. Grandes barcos pesqueiros de Manaus invadiram o rio, praticando a pesca ilegal e reduzindo o estoque de peixes da região.
Em 2008, o presidente da Associação dos Agroextrativistas do Baixo Rio Branco-Jauaperi (Ecoex), Francisco Felix, teve a casa incendiada na comunidade Floresta. Tudo indica que o ataque foi feito por opositores da reserva extrativista. Até hoje os responsáveis pelo atentado não são conhecidos. O assassinato de um comunitário em atividade voluntária de fiscalização pelo IBAMA também pode estar relacionado à luta pela demarcação.
Para Durigan, após tantos anos de espera, é necessário resgatar o entusiasmo e engajamento das comunidades, promover novamente o movimento em torno do estabelecimento da Resex e, principalmente, iniciar o processo de construção de seu Plano de Manejo e criação de seu Conselho Gestor.
"A criação da Resex do Jauaperi é mais um passo importante para o ordenamento fundiário do médio Rio Negro, após a delimitação da Terra Indígena Jurubaxi-Téa e a criação do Sítio Ramsar", conclui Marcio Santilli, sócio-fundador do ISA.
Para o secretário de Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente, José Pedro de Oliveira Costa, a área tem um potencial de produção de pescado sustentável muito grande. Outra possibilidade é o ecoturismo, como complemento de renda para essas comunidades.
"A área complementa um corredor de proteção importante", afirma o secretário. Oliveira explica que, junto com TIs e outras UCs da região, a Resex compõe uma área fundamental para conter as mudanças climáticas. Segundo o secretário, o tempo médio para o processo de criação de uma UC é de nove meses.
APA e RVS Ararinha Azul na Caatinga
O processo de criação das duas UC era aguardado desde julho de 2017, quando consultas públicas foram realizadas. Após as consultas, a proposta de criação das UC foi submetida à área jurídica do Ministério do Meio Ambiente, passou pela Casa Civil. O decreto presidencial instituiu oficialmente as unidades.
Atualmente existem cerca de 130 indivíduos da ararinha-azul (Cyanopsitta spixii), distribuídos em criadouros particulares do Catar, Alemanha, Espanha e Brasil. A espécie é considerada oficialmente extinta na natureza desde 2000. Objetivando o aumento dessa população em cativeiro e a recuperação do habitat da espécie para sua reintrodução, o ICMBio lançou, em 2012, o Plano de Ação Nacional (PAN) para a Conservação da Ararinha-azul (veja aqui).
A criação da APA e do RVS faz parte das estratégias de reintrodução na caatinga baiana dos primeiros indivíduos da espécie mantidos em cativeiro. A expectativa, segundo o Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Aves Silvestres (Cemave/ICMBio), é que as primeiras solturas ocorram até 2021.
A caatinga é o único bioma exclusivamente brasileiro e é um dos mais degradados pela ação do ser humano. Ele ocupa aproximadamente 11% do território nacional, sendo que cerca da metade de sua vegetação original foi desmatada. A criação das UCs nesse bioma amplia sua área de conservação. São 1.101.083 hectares em unidades de proteção integral. Com a criação das duas UCs, o Brasil passa a contabilizar nove Refúgios de Vida Silvestre e 37 Áreas de Proteção Ambiental federais.
Segundo o Decreto Nº 9.402, que cria ambas as áreas, seus respectivos subsolos integram os limites das unidades de conservação. Ficam excluídas dos limites da RVS as instalações e a faixa de servidão da linha de transmissão 500 kV Luiz Gonzaga - Sobradinho C2; e a faixa de domínio de 40 metros de cada lado da rodovia BA - 120, medida a partir do centro da faixa de rodagem.
A zona de amortecimento do Refúgio de Vida Silvestre da Ararinha Azul será a própria Área de Proteção Ambiental da Ararinha Azul. O Plano de Manejo do Refúgio de Vida Silvestre da Ararinha Azul regulamentará as atividades agropecuárias com vistas a garantir sua sustentabilidade ambiental em conformidade com os objetivos da unidade de conservação. Fica permitida a manutenção das atividades agropecuárias existentes até a publicação do Plano de Manejo.
Resex Baixo Rio Branco Jauaperi: a mais longa espera
Em 2001, moradores das comunidades de Santa Maria Velha, Vila da Cota, Remanso, Itaquera, Floresta, Samaúma e Xixuaú, em Rorainópolis(RR), solicitaram ao Ibama a criação da Reserva Extrativista Baixo Rio Branco-Jauaperi. Algum tempo depois, aderiram à proposta outras comunidades localizadas na margem esquerda do Rio Jauaperi, um dos afluentes do Rio Negro, no município de Novo Airão (AM).
O Jauaperi é um rio de águas escuras que nasce próximo à fronteira de Roraima com a Guiana na Serra do Acaraí. Corre pelo sul do estado, numa área já bastante convertida até se aproximar do baixo rio Branco e desaguar no rio Negro, marcando a divisa entre Roraima e Amazonas.
Em 2006, os procedimentos legais foram encaminhados ao Ministério do Meio Ambiente e então à Casa Civil. Com a demora na tramitação, o apoio para a criação da Resex foi tomando corpo: manifestos, ofícios e abaixo assinados da sociedade civil e de associações comunitárias extrativistas, Ministério Público. Entre 2007 e 2009, foram realizadas mobilizações em Brasília e Manaus, por meio do apoio da Rede Rio Negro, rede de ONGs formada pelo ISA, Fundação Vitória Amazônica, WCS, Foirn, Instituto de Pesquisas Ecológicas, Secoya e WWF-Brasil, que iniciou apoio mais estruturado às comunidades.
Um dos fortes oponentes do reconhecimento da Resex durante todos esses anos foi o governo estadual de Roraima. Além de anunciar a instalação de assentamentos rurais na área e em seu entorno em 2005. Relembre aqui.
Em 2006 o governo do Estado de Roraima ajuízou no Supremo Tribunal Federal ação contra o Ibama em virtude da criação da Reserva Extrativista Baixo Rio Branco-Jauaperi (veja aqui), alegando que a proposta da criação da reserva violava o pacto federativo, de autonomia conferida pela Constituição aos Estados-membros da Federação e que a União pretendia criar uma Reserva Extrativista em área já destinada à ‘reserva de igual conteúdo’ pelo governo do estado.
De fato, em 2006 o governo do estado criou, na região, a Área Proteção Ambiental Baixo Rio Branco. O argumento, entretanto, não procede. As APAs são das categorias que mais flexibilizam o uso da terra, sendo permitida a existência de terras privadas em seu interior e com regulamento que possibilita o corte raso de vegetação nativa e até mineração. Ou seja: as normas desse tipo de UCs são muito menos rigorosas do ponto de vista ambiental do que aquelas que regulam Flonas, Parques Nacionais e Rebios. O Tribunal, por unanimidade, negou provimento ao recurso de agravo e declarou extinto o processo cautelar.
A posição do Estado de Roraima só mudou depois de 2014, com as negociações para a transferência das terras da União para o Estado. A partir daí, o governo passou a apoiar a criação da Resex.
O Decreto Nº 9.401 de 05/06/2018, que cria a Resex, atesta que a zona de amortecimento da Resex será definida por meio de ato específico do Presidente do ICMBio, sendo permitidas as atividades de pesquisa e produção mineral autorizadas até então pela Agência Nacional de Mineração e licenciadas pelo órgão competente.
São permitidas obras nas áreas destinadas à Rodovia BR-431, mediante procedimento de licenciamento ambiental. Fica permitida também a operação e a manutenção da Usina Termoelétrica Vila Tanauá e de seu sistema de distribuição associado na Resex. A operação, a manutenção e a implementação de novas linhas de transmissão e de suas instalações associadas serão permitidas na zona de amortecimento da Reserva Extrativista Baixo Rio Branco-Jauaperi, nos termos do disposto no parágrafo único do art. 46 da Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000.
A área da Reserva Extrativista incide cerca de 66% com a APA estadual Baixo Rio Branco.