Comunidades indígenas e tradicionais boicotam audiência do MMA sobre lei de biodiversidade
Monday, 26 de October de 2015Debate promovido pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA), na semana passada, em Brasília, para colher subsídios para a regulamentação da Lei 13.123/2015 – que regula o acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional – foi mais vazio do que o esperado. Povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores familiares decidiram boicotar a audiência pública em protesto contra a forma como o governo vem conduzindo a formulação e regulamentação da lei. Eles também divulgaram carta aberta em que repudiam e pedem a revogação da lei, por ela ferir princípios constitucionais e seus direitos básicos.
“Estamos vivenciando um dos momentos de mais expressivos genocídios da nossa história, declaradamente por meio de grandes projetos, grilagem de terras, expropriação e invasão, assassinato de lideranças e muito mais”, afirma o documento. Ele expõe a violação dos direitos dos povos tradicionais e indígenas na formulação lei e o desrespeito à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que garante direito de consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas sobre quaisquer medidas que afete seus territórios (leia a carta na íntegra no final da notícia).
“O tema, além de ser polêmico, é pautado por muita desinformação”, contestou Rafael de Sá Marques, diretor do Departamento do Patrimônio Genético do MMA, após a leitura da carta na audiência. Para ele, as críticas do documento não contemplam o real conteúdo da legislação: por exemplo, não se justificaria o receio de que de que povos e comunidades tradicionais não teriam direito ao uso de seus conhecimentos e de que não poderiam negar o acesso a seu patrimônio genético.
“O processo de regulamentação que está ocorrendo não contempla o que eles [povos indígenas e tradicionais] consideram adequado”, afirmou o procurador da República Anselmo Lopes. Ele destacou que essas comunidades e agricultores familiares vêm tendo “dificuldade de aceitar a lei, não só pelo conteúdo, mas pela forma como ela tramitou até ser aprovada”. Foi Lopes quem pediu para a carta ser lida na audiência.
César Carrijo, representante da Casa Civil, afirmou que a complexidade do tema teria impedido o governo de apresenar uma minuta de decreto na audiência, apesar de este ter sido o seu objetivo. Carrijo apresentou o que chamou de “minuta zero”, primeira sugestão da Casa Civil para a regulamentação de alguns pontos da lei. A proposta pode ser acessada no site do MMA e há espaço para envio de críticas e sugestões até 30/10.
“O governo está colhendo os frutos do que semeou ao formular uma nova lei sem consultar povos indígenas e comunidades tradicionais”, critica Nurit Bensusan, especialista no assunto e assessora do ISA. Ela argumenta que as oficinas regionais sobre a regulamentação organizadas pelo governo, quando muito, serviram para dar uma dimensão para os detentores de conhecimento tradicional da “afronta” que foi a tramitação e o texto da lei.
“A regulamentação pode, no máximo, mitigar alguns dos estragos, mas os direitos desses povos e comunidades foram desprezados. E pior, quem diz que a atitude deles, ao boicotar essa audiência pública, é derivada de desinformação, menospreza não apenas os direitos desses povos, como também sua inteligência”, conclui.
A audiência contaria com representantes da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural, Reforma Agrária e Agricultura Familiar (Condraf) e Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT). Com o boicote, os representantes do governo foram acompanhados apenas por representantes da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Confederação Nacional da Indústria (CNI) e Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA).
A Lei 13.123/2015 vai regular o acesso e exploração econômica do patrimônio genético brasileiro e dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade e à agrobiodiversidade. Ela substituirá a Medida Provisória nº 2186-16/2001 e entrará em vigor em meados de novembro, mas necessita de um decreto para que seja implementada, pois seu texto remete mais de 30 pontos para a regulamentação. Após uma tramitação apressada e pouco democrática, a presidente Dilma Rousseff sancionou a Lei de em maio de 2015.
Nós, Povos Indígenas, Povos e Comunidades Tradicionais e Agricultores Familiares presentes entre os dias 19 e 21 de outubro de 2015, na oficina nacional referente à Lei 13.123/2015 que trata sobre acesso aos conhecimentos tradicionais, patrimônio genético e repartição de benefícios, vimos por meio desta repudiar a forma como o Estado brasileiro tem conduzido a discussão.
Primeiro, por violar nossos direitos constitucionais garantidos na Carta Magna de 1988, pela legislação ordinária e por Tratados Internacionais ratificados pelo Brasil, tais como Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento; Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; Convenção da Diversidade Biológica; Convenção sobre a Diversidade de Expressões Culturais; Tratado Internacional sobre os Recursos Fitogenéticos para Alimentação e Agricultura; Declaração Universal dos Direitos Humanos; Declaração e Programa de Ação adotadas na III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata (Durban, África do Sul); Declaração da Organização das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas e Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas, de forma perversa e em razão desse cenário que ameaça a existência de absolutamente todas as populações indígenas, povos e comunidades tradicionais, os quais constituem a base da soberania e democracia constitucional do País.
Segundo, por burlar a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho no que concerne ao direito de consulta livre, prévia e informada, também endossado nos acordos acima citados.
Terceiro, pela recusa explícita em nos apresentar a minuta de Decreto da Lei 13.123 de 2015 ou qualquer outra proposta que trata da regulamentação da referida Lei, o que implica diretamente na obstrução e confronto direto com a própria Constituição Federal além dos acordos internacionais já mencionados.
Portanto, nestes termos, que fique claro que todas as oficinas regionais sobre a referida Lei, não pode tampouco deve configurar sob hipótese alguma caráter consultivo, visto que estas não preenchem os requisitos exigidos de como deve ser para uma consulta pública. E ainda, o desdém com que se referem a nós.
Estamos vivenciando um dos momentos de mais expressivos genocídios da nossa história, declaradamente por meio de grandes projetos, grilagem de terras, expropriação e invasão, assassinato de lideranças e muito mais, tudo isso ocasionado pela falta de vontade política clara quanto à regularização, demarcação e titulação dos territórios tradicionais (Terras Indígenas, Territórios Quilombolas, Reservas Extrativistas, Territórios de Fundos e Fechos de Pasto, Territórios das Quebradeiras de Coco Babaçú, Catadoras de Mangaba, Territórios de Povos de Terreiro, Retireiros do Araguaia, Pomeranos, RESEX Marinhas, Vazanteiros, Geraizeiros, Pescadores de água doce e salgada, caiçaras, pantaneiros, ilhéus, raizeiras, faxinalenses, benzedeiras) inclusive a garantia de Territórios Ciganos a fim que sejam oportunizados de manterem seus cultivos silvopastoris, expondo-nos a um processo devastador da nossa cultura, perda de identidade e de práticas tradicionais que ameaçam como nunca os PCTS do Brasil.
É inadmissível não ter assegurado nossos direitos consuetudinários de praticar a medicina tradicional e ancestral a partir dos nossos conhecimentos tradicionais. Nossos usos e costumes são passados e repassados de geração a geração a indivíduos escolhidos pela natureza e que segue rigorosamente rituais espirituais impossíveis de outras pessoas absorverem, que não sejam aquelas respaldadas por suas comunidades e principalmente por seus guias espirituais.
Nós, povos indígenas, povos e comunidades tradicionais e agricultores familiares repudiamos a PEC 215/2000, na medida em que essa proposta aniquila os direitos territoriais conquistados, e exigimos seu imediato arquivamento.
Repudiamos terminantemente a Lei 13.123/2015 e exigimos de imediato que seja feito consulta livre, prévia e informada, conforme rege a Convenção 169 da OIT, bem como demais acordos internacionais ratificados pelo Brasil, de modo que seja revogada a referida lei por ferir princípios constitucionais.
Brasília/DF, 21 de outubro de 2015.