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A pandemia nossa de cada dia: a responsabilidade do outro lado do espelho

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Nurit Bensusan, assessora do ISA e especialista em biodiversidade

Um dos reflexos mais tristes da pandemia é o do espelho. É nesse espelho que vemos quem realmente somos: uma civilização inconsequente e pronta para fugir de suas responsabilidades. Nesse reflexo, fica patente que o queremos é voltar para nosso “mundo normal” o mais rápido possível. Coronavírus? Que a tecnologia encontre uma solução. Desmatamento? Lamentável, talvez, mas o que que realmente eu tenho a ver com isso? Desigualdade? Uma tragédia, de fato, mas o que eu posso fazer?

Quando Alice atravessa o espelho, em sua incrível jornada, ela descobre que apenas o que ela vê do lado de cá, refletido no espelho, é igual. Nas partes eclipsadas de sua casa, do jardim e das vizinhanças, o mundo do espelho é radicalmente diferente. Será que no caso do espelho que nos reflete, durante a pandemia, poderíamos também descobrir partes ocultas, cantos recônditos, que escondem um mundo diferente?

E se assumíssemos, de fato, a responsabilidade que nos cabe pelo que acontece no mundo hoje? Talvez assim, um outro mundo se revelaria. Já acumulamos evidências de que a pandemia do coronavírus está relacionada com as formas com que lidamos com a natureza. Essa, a da vez, possivelmente tem relação com os mercados onde animais silvestres são comercializados e que existem em diversos lugares do mundo. Os surtos de ebola na África e as sucessivas epidemias de malária e leishmaniose na Amazônia estão fortemente conectadas com o desmatamento das florestas e com a conversão de áreas naturais em monoculturas e pastos. Epidemias de gripe suína e aviária originam-se do modelo atroz no qual confinamos, multiplicamos e abatemos animais destinados a alimentar nosso apetite por proteína. Quem são os responsáveis?

Responsabilidade com o mundo

Uma das características da nossa forma quase hegemônica de estar no mundo é a conveniência da obediência amalgamada à facilidade em se eximir de qualquer responsabilidade sobre o que acontece no mundo e com os outros, humanos e não humanos. Obedecemos às regras do mercado, ao pensamento pronto, às ideias reinantes, à “lógica” da inevitabilidade. Acreditamos, de forma oportuna, que não há outro caminho, senão o da aceitação, que pode ser confortável para os que vivem bem, e recomendável, para os que vivem mal. Não somos responsáveis pela pandemia nossa de cada dia. Nem pelo desmatamento que devora a Amazônia. Menos ainda pelo tráfico de animais ou pela forma que as fazendas de produção de carne tratam os animais. Será?

No Brasil, as atividades que levam ao desaparecimento da vegetação natural tem se acelerado, protegidas pelo beneplácito do governo atual. Os dados mostram que mais de 90% do desmatamento é ilegal, mas não enfrenta nenhuma resistência, nenhuma punição. Não temos nenhuma responsabilidade em conviver com essa situação, em aceitá-la como algo dado, inevitável, consumado?

Em um livro especialmente inspirador para o momento atual, intitulado “Desobedecer”, Frédéric Gros aponta as diversas dimensões da responsabilidade. Uma delas é a responsabilidade do mundo: a ideia de que somos solidários das injustiças produzidas em todos os lugares. Solidário aqui no sentido que não é possível fazer com que essas injustiças não nos digam respeito, pois há sempre uma interface pela qual estamos ligados a ela e algo do destino da humanidade - e eu especificaria, da Amazônia, da biodiversidade, da natureza, da crise climática, da perpetuação da desigualdade - é decidido aí.

Assim, tomemos o exemplo do desmatamento. As pontas que nos ligam a essas práticas são inúmeras: podem estar na nossa dieta que privilegia o consumo exagerado de proteína animal, podem residir no encanto que esquadrias e decks de madeira nos proporcionam, podem ter relação com a falta de conhecimento sobre a floresta e seus povos, podem estar na nossa visão colonizada onde há um espaço nobre na nossa cozinha para a farinha de trigo e uma ignorância sobre a farinha de mesocarpo de babaçu ou em muitos outros lugares. O importante é que não há desculpa plausível para nos afastarmos dessa responsabilidade, apenas uma fuga, uma cegueira propositada ou uma neutralidade cúmplice. Cada um traz - ou deveria trazer - em si a responsabilidade do mundo: ou seja somos responsáveis por princípio e, quando nada fazemos, somos cúmplices. Assim, nenhuma desculpa poderia existir para não combatermos injustiças, práticas predatórias e iniquidades.

Responsabilidade com o mais frágil

Outra dimensão da responsabilidade apontada por Gros é a que ele chama de responsabilidade infinita ou responsabilidade do frágil. É a fragilidade do outro, sua vulnerabilidade, que funciona como um clamor para que sejamos responsáveis por ele, para que tomemos nos ombros esse fardo de ter que infinitamente atuar para assegurar sua proteção. Aqui podemos tomar como primeiro exemplo nossas relações com os índios e com os demais povos da floresta. Não nos sentimos responsáveis pela situação na qual eles se encontram, apesar de muitos de nós sermos parte de um projeto colonial que destruiu seus mundos. Não exigimos que sua autonomia e sua dignidade sejam restauradas a qualquer preço. Não deveria haver aqui, tampouco, desculpas para nos eximirmos de nossas responsabilidades.

Outro exemplo da responsabilidade infinita diz respeito às nossas relações com os animais confinados para o abate. Não apenas nos dedicamos à multiplicação desses animais somente para matá-los e devorá-los, como mantemos esses seres vivos em condições de permanente sofrimento para minimizar custos e maximizar lucros. Tal situação não deveria chegar como brados aos nossos ouvidos, para que nos responsabilizemos, para que nos engajemos, para que não sigamos pelo caminho da neutralidade cúmplice?

Uma ideia aparentemente impossível: assumir as responsabilidades, recusar a neutralidade cúmplice e cultivar a resistência ética. A pandemia, por sua vez, também parece assumir uma faceta que parecia improvável: quarentenas mais longas do que se esperava, economias destruídas em grandes dimensões, tratamentos e vacinas difíceis e distantes. Essa situação poderia, talvez, nos conduzir a uma nova mirada no espelho, talvez sejamos obrigados a encarar o que relutamos admitir, que o que temos hoje é resultado de nossas escolhas e, por consequência, de nossa responsabilidade.

No conto de Machado de Assis, O Espelho, que narra como alguém pode ser de tal forma levado a se ver apenas como o reflexo do que dele falam, perdendo assim o contato com sua “alma interior”, o espelho também desempenha um papel relevante. Ao distorcer a imagem de Jacobina, o personagem do conto, de maneira que quando lhe falta a aprovação e os elogios externos fica claro que ele nada mais é para si mesmo, o espelho acaba por revelar sua “alma interior” em xeque. No conto, é a consciência dessa situação que transforma.

O prolongamento da excepcionalidade causada pela pandemia talvez possa produzir um reflexo, derivado da perda de importância da aprovação da maioria e do distanciamento do pensamento já pensado, onde seja possível ver nossa “alma interior” em xeque. Será isso suficiente para transformar essa ideia impossível em um componente concreto de um futuro pós-pandêmico? Como será o futuro pós-pandêmico se essa ideia impossível não existir? Desastrosamente parecido com o presente e possivelmente curto.

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