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“Uma sociedade que precisa proteger a natureza de si mesma, só pode estar errada.” Essa é uma frase famosa atribuída a José Lutzenberger, um dos primeiros ambientalistas do país, que morreu no começo deste milênio. Não sei em que ano Lutzenberger teria dito essa frase, mas independente do momento, ela é mais verdadeira a cada instante. Sem dizer que já estamos pagando o preço do nosso fracasso em proteger a natureza, em vidas cobradas nessa pandemia nossa de cada dia.
Historicamente, o instrumento mais usado para proteger a natureza de nós mesmos tem sido a criação de áreas de conservação, como parques nacionais. Há inúmeros casos de espaços anteriormente reservados para finalidades específicas, como a caça, mas o primeiro parque nacional estabelecido, usando esse modelo que seguimos até hoje, foi o Parque Nacional de Yellowstone, nos Estados Unidos, em 1872. Entre suas muitas atrações, está a caldeira, um vulcão inativo que teria tido suas últimas erupções há cerca de 2 milhões de anos. O vulcanismo presente no parque pode ser visto na grande presença de fontes termais e gêiseres.
São os microorganismos presentes nessas fontes termais que possibilitaram o desenvolvimento de uma técnica da biotecnologia, responsável, entre diversos outros avanços, pelos testes de detecção do coronavírus. Famosa entre os pesquisadores da biologia molecular, a história mostra como uma pesquisa centrada apenas na descrição de novos organismos e das condições em que eles vivem pode acabar revolucionando todo um campo de pesquisas. Na década de 1960, o microbiologista Thomas Brock identificou uma bactéria nas fontes termais de Yellowstone que vivia na temperatura mais alta jamais registrada para um ser vivo: 75ºC. Vale dizer que depois outros organismos que vivem em temperaturas extremas foram identificados. Mas, naquele momento, essa era uma descoberta muito instigante e, na sequência, começaram os estudos para entender os mecanismos biológicos que permitiam essa bactéria viver nessa temperatura.
Duas décadas depois, dessas pesquisas nasceu uma técnica que usa uma enzima presente nessa bactéria, a TAQ polimerase, para promover uma rápida multiplicação do DNA, produzindo milhares de cópias. Um dos gargalos do processo era a necessidade de uma enzima que resistisse a altas temperaturas, problema resolvido pela TAQ polimerase. Com essa técnica em mãos, conhecida como PCR, sigla, em inglês, para “reação em cadeia de polimerase”, as análises de DNA para diversos fins se tornaram viáveis e hoje estão presentes desde testes de paternidades até aqueles de identificação de agentes patogênicos. Uma reportagem recente da BBC conta detalhes da história.
O que ela revela é algo que sempre soubemos, mas preferimos esquecer: muitas das soluções para os dilemas humanos residem na natureza. Os exemplos são inúmeros e podem começar com um dos mais usados medicamentos de todos os tempos, a aspirina. Comercializada a partir de 1899, a aspirina é resultado de um processo de pesquisa química a partir da salicina, substância derivada da casca do salgueiro, árvore também conhecida como chorão.
Desde a época dos gregos, o pó da casca do salgueiro era usado para aliviar dores e combater a febre. Sumérios, egípcios, assírios e nativos da América do Norte também usavam a casca de salgueiro contra dores de cabeça, reumatismo e febres. Ao longo do século XIX, na Europa, foram feitas muitas pesquisas com a casca do salgueiro e a salicina foi identificada como o princípio ativo. A partir daí, seguiram-se outras experiências e, no final do século, um laboratório farmacêutico alemão conseguiu juntar a salicina com outras substâncias, produzindo o ácido acetilsalicílico, que é o que conhecemos hoje como aspirina. Tal substância não tem tantos efeitos colaterais como aqueles que a salicina, sozinha, tinha, tais como o gosto desagradável e a irritação no estômago. A aspirina virou um sucesso imediato, foi o primeiro remédio a ser sintetizado em laboratório, ao invés de coletado na natureza, e o primeiro medicamento a ser vendido em comprimidos.
Outras substâncias populares também vieram da natureza, como a morfina, derivada dos frutos verdes da papoula, e o botox, nome comercial da toxina botulínica, usada para suavizar rugas, produzida por uma bactéria. Há ainda muitos exemplos de medicamentos que ajudaram milhares de pessoas que, muitas vezes, sequer sabiam da origem dessas substâncias, como é o caso de um famoso remédio contra pressão alta, o Captotril, e um medicamento contra o glaucoma, a Pilocarpina. O princípio ativo do Captotril, identificado por pesquisadores brasileiros, é derivado do veneno da jararaca e a pilocarpina, princípio ativo de um dos colírios mais usados no mundo contra glaucoma, está presente nas folhas de uma espécie brasileira, o jaborandi.
No entanto, essa natureza, que pode nos prover tanto, é cada vez mais destruída e empurrada para dentro de áreas protegidas para dar lugar a uma ocupação cada vez mais predatória, com coleções de monoculturas agrícolas, fábricas de animais confinados, áreas de mineração e pastos sem fim. Por algum tempo, ainda conseguimos fazer o que Lutzenberger apontava como prova do nosso equívoco como sociedade, protegemos parte da natureza de nós mesmos. Esse projeto, porém, parece muito ameaçado e a maior prova vem daqui mesmo, da Amazônia.
Unidades de conservação e terras indígenas protegem parte significativa da região. Para evitar a emergência de novas doenças, para aproveitar o potencial de inovação que a natureza nos oferece, para ajudar na manutenção da estabilidade climática e para preservar povos indígenas, comunidades locais e suas formas diversas de estar no mundo, a manutenção da integridade da floresta é fundamental. Deveria ser parte fundante de um projeto de país. Porém é o contrário o que se verifica. O desmatamento que, com poucos anos de exceção, sempre foi escandaloso na Amazônia, aumenta cada vez mais, adentrando as áreas protegidas, estimulado pelo enfraquecimento dos órgãos de fiscalização e pelo discurso oficial que promove a grilagem, a invasão de terras e a violência.
No primeiro trimestre deste ano, a destruição da floresta na região foi 51% maior que o mesmo período do ano passado e 50% dele ocorreu em terras públicas que estão sob a guarda da União e dos Estados, como as unidades de conservação e as terras indígenas (saiba mais).
A tradução é que, enquanto nos debatemos com a ideia de que o presente é uma máquina de fazer futuros, já se desenha um futuro sem Amazônia, sem floresta, sem natureza, com mais doenças, mais desigualdades e com menos oportunidades. Quem sabe que inspirações a exuberância da floresta poderia trazer à humanidade? Quem sabe que mundo poderia emergir dessa pandemia se não estivéssemos todos já irremediavelmente imersos em um presente sem horizontes? Quem sabe se é possível ainda pegar carona no último rabo de cometa e sonhar com novos mundos?