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Pensar em coisas impossíveis, como quer a Rainha Branca de “Alice através do espelho”, pode ser muito doloroso, especialmente quando as coisas que parecem impossíveis, de tão inaceitáveis e repugnantes que são, tornam-se possíveis e corriqueiras. Sigo no meu desafio de pensar em seis coisas impossíveis que, se fossem materializadas, o futuro pós-pandêmico poderia ser melhor (veja quadro abaixo). Nesse desafio, a resistência às coisas inaceitáveis que se tornam rotineiras é algo que parece impossível, mas que se se tornasse realidade poderia fazer do mundo um lugar melhor para a maioria de seus habitantes
A jornada de Alice pelo País das Maravilhas e através do espelho promove o encontro dela com criaturas estranhas que colocam à prova, a cada momento, suas certezas. Aqui, no país da pandemia, é o que nos acontece todos os dias. Nossas convicções são questionadas pelos fatos o tempo todo. Alice confronta-se com plantas que falam, gatos que sorriem, peças de xadrez e cartas de baralhos que são reis e rainhas de fato e toma chá com um Chapeleiro maluco em companhia de uma lebre e de um caxinguelê. Nós nos confrontamos com um tal espantoso desrespeito cotidiano à vida, refletido no descaso que a pandemia é tratada pelo governo e nas ações de seus agentes e de seus apoiadores, que nos obriga a revisitar nossas impressões - pois já não são mais convicções - sobre se essas estranhas criaturas são, de fato, humanas.
São três as rainhas que Alice encontra em suas aventuras pelo país das maravilhas e através do espelho. A Rainha Branca, da qual já falamos em textos anteriores e que nos coloca em xeque com seu convite sobre pensar em coisas impossíveis; a Rainha Vermelha, que inspirou a hipótese que leva seu nome na biologia, que trata da necessidade que as espécies têm de mudar o tempo todo para seguirem existindo em um ambiente em constante transformação; e a Rainha de Copas, da qual pouco falamos até agora, mas cujo bordão, todo conhecem: “cortem-lhe a cabeça!”
Talvez seja possível dividir a humanidade entre aqueles que estremecem ao ouvir os gritos da Rainha de Copas e aqueles que apenas riem. Aqueles que sabem que, sim, é possível que a Rainha de Copas esteja falando sério e que as cabeças rolem e os outros que têm uma certeza entranhada dentro de si de que nada lhes acontecerá. Os que vivem à sombra do genocídio, mais vezes consumado do que apenas ameaçado, e os que carregam o sol na cabeça, certos de que são os senhores do mundo.
Eu cresci à sombra de um genocídio: o holocausto, onde seis milhões de judeus morreram na beira de valas comuns, em campos de concentração e de extermínio nos poucos anos em que durou a Segunda Guerra Mundial. O número é tão estarrecedor que perde o impacto, é como se toda a população da cidade do Rio de Janeiro fosse assassinada. Como se não bastasse matar todo povo uruguaio uma vez, para totalizar seis milhões, seria necessário matar cada uruguaio duas vezes. Esse número, seis milhões, equivalia na época à metade dos judeus que existiam no mundo.
Muitos outros genocídios sombrearam a existência de inúmeros povos, como os armênios massacrados por turcos, os povos do Congo varridos do mapa pelos belgas e os tutsis assassinados por hutus, em Ruanda, para ficar com poucos exemplos. Outros povos seguem temendo genocídios que parecem se delinear, como palestinos oprimidos por israelenses, tibetanos ameaçados pelos chineses e rohingyas perseguidos em Mianmar.
Outros genocídios amalgamaram-se de tal forma à pele de alguns povos que se misturam com sua própria identidade. Isso acontece, em parte, com os judeus, mas principalmente com a população negra que foi trazida contra sua vontade, para ser escravizada no Brasil, e com os povos indígenas, que tiveram seu território invadido por europeus e doenças que deixaram um rastro de morte e destruição.
Essa sombra dá a certeza de que se a Rainha de Copas gritar “cortem-lhe a cabeça” são as cabeças dessas populações que serão cortadas. E não é diferente agora, é apenas mais do mesmo, agudizado pela pandemia nossa de cada dia. Além das pessoas das periferias das cidades brasileiras, em sua maioria negras, que ficam mais a mercê do contágio pelo coronavírus, reflexo da desigualdade e do racismo entranhado no Brasil, povos indígenas e comunidades quilombolas estão sendo atingidos de forma exponencial pela Covid-19. Apenas o descaso pela situação cresce tão rápido quanto o contágio entre povos indígenas e quilombolas.
O agravante terrível, se é possível agravar tal cenário, é que com a morte de muitas pessoas mais velhas, repositórios do conhecimento desses povos, a recuperação dessas comunidades será muito difícil. Perdas de vidas, que poderiam ser evitadas, combinadas com a destruição de modos de vida, de formas de pensar e estar no mundo podem lançar sombras muito duradouras sobre esses povos. No momento em que enfrentamos uma pandemia que coloca em xeque as nossas relações com a natureza e nossas formas de produzir, abrir mão desse conhecimento, que se vai com esses mais velhos, parece um convite a autodestruição.
A natureza, em sua diversidade, é fértil em soluções para as questões que vão se colocando para os organismos com que dividimos o planeta e para nós mesmos. Nossa sociedade, porém, insiste em se acreditar autossuficiente, apostando em remendar seus sistemas produtivos, fazer pequenos ajustes nas suas formas de lidar com a natureza e tocar para frente, como se não houvesse amanhã. Talvez não haja, se persistirmos nesse caminho… A alternativa passa pela natureza como inspiração, mas para tanto o conhecimento é fundamental.
Povos indígenas estão umbilicalmente ligados a natureza que os cerca, interagindo com ela de maneiras, por vezes, incompreensíveis para nós, mas que podem nos ajudar a revisitar nossas formas de estar no mundo. Comunidades de quilombo desenvolveram fortes relações com os ambientes que as circundam e com as espécies que compõem as paisagens que habitam. Projetos de futuro que misturem esses conhecimentos com novas formas de fazer ciência podem abrir caminhos, mas, para isso, é preciso que pessoas e saberes permaneçam vivos.
A pandemia precipitou um cenário que já vinha se delineando, onde as formas mais terríveis de discriminação, racismo e desigualdade tornam-se aceitáveis e a ideia de que não há nada a fazer prevalece. Essa discriminação, cerne do projeto colonial sem fim, imposto inicialmente pelos europeus às Américas, mede tudo pela régua do avanço tecnológico. A tecnociência da nossa sociedade, porém, é unidimensional. Incapaz de perceber as sutilezas do conhecimento dos índios e dos quilombolas, insensível às nuances dos saberes femininos, atropela tudo com suas máquinas de destruição. Nesse processo, elimina possibilidades e o resultado é um deserto de alternativas.
Talvez o descaso com a morte daqueles que a sociedade colonial e racista sempre tratou como descartáveis, neste momento, seja mais uma dimensão da dominação, etapa bem planejada de um projeto que visa se tornar completamente hegemônico, eliminando aqueles que podem oferecer um contraponto a essa forma de viver. Boaventura de Sousa Santos pondera, em seu livro “O fim do império cognitivo”, que uma crise permanente é muito conveniente para o capitalismo global pois “em vez de exigir ser explicada e vencida, explica tudo e justifica o estado de coisas atual como sendo o único possível, mesmo que tal signifique infligir as formas mais repugnantes e injustas de sofrimento humano”. Assim, a pandemia nossa de cada dia poderá se tornar, ao invés de uma oportunidade para um novo futuro, um elemento a mais para esse cenário de crise permanente, vantajoso para o avanço do capital.
Como será possível construir um futuro pós-pandêmico sem expandir o seleto clube que se autodenomina humanidade, nas palavras de Ailton Krenak, para abarcar todos os humanos? Como será possível imaginar algum futuro sem que façamos caber dentro dos limites dos seres cuja vida importa todos os humanos? Como construir outro mundo sem a inspiração de outros saberes, pensados em contextos diversos, talhados em outras searas?
Neste momento onde toda neutralidade é cúmplice e a inação tem consequências nefastas, os que lutam contra essa dominação, traduzida em genocídio aqui e agora, não verão a luz no fim do túnel. Como lembra Boaventura, terão que levar consigo lanternas portáteis para encontrar o caminho e evitar acidentes fatais. É uma luta longa e a inspiração só pode estar fora desse sistema que nos conduziu a esse beco sem saída. Ou seja, nesse beco, a alternativa é olhar para o céu, evitar que ele despenque sobre nossas cabeças e não esquecer como as plantas com suas raízes e ramos avançam sobre os materiais mais duros, abrem fissuras e brotam. Resistem e persistem.
Na jornada de Alice ao outro lado do espelho, ela encontra a Rainha Branca, que a desafia a acreditar em algo impossível. Quando Alice diz que não se pode acreditar em coisas impossíveis, a Rainha contesta dizendo que o problema era a falta de prática de Alice e afirma, orgulhosa, que na idade da menina, algumas vezes chegou a acreditar em seis coisas impossíveis antes do café da manhã.
O desafio a que eu me lancei é imaginar seis coisas que parecem impossíveis mas que se colocadas em prática poderia fazer do futuro pós pandêmico algo melhor. Logo percebi que a Rainha Branca tinha razão: não temos o hábito de pensar em coisas impossíveis, estamos de tal maneira mergulhados nessa nossa forma de viver que pensar em outros mundo possíveis já é quase uma impossibilidade. Assim, o desafio é imenso. Recomendo que vocês também se exercitem, mas não antes do café da manhã, para evitar o risco de morrer de fome. Só assim poderemos criar alternativas. Aqui está o texto que deu origem ao desafio: Alice no país da pandemia
Esse é o quarto texto desse desafio. Abaixo um pequeno resumo das ideias impossíveis que tive e sobre as quais escrevi com o link para os textos:
Coisa impossível 1: levar a inspiração da natureza até as últimas consequências, tanto na diversidade que compõe o mundo, como nas soluções que ela encontra para os problemas que se colocam. Inspiração até as últimas consequências
Coisa impossível 2: assumir as responsabilidades do que fazemos, como humanidade, pensando nas dimensões da responsabilidade do mundo e da responsabilidade com o mais frágil. Responsabilidade do outro lado do espelho
Coisa impossível 3: entender que com esse sistema de produção de alimentos, que guarda dentro de si tanta destruição, viveremos num mundo onde eventos imprevisíveis epidemiológicos e climáticos se sucederão com mais frequência. Sementes da morte