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Márcio Santilli, sócio fundador do ISA
Nunca antes na história deste país tantas cartas foram escritas para o presidente de um outro país. Nesses dias, Joe Biden tem recebido um monte de mensagens sobre a Amazônia e o Brasil. Sentimentos de esperança e de preocupação misturam-se na busca, meio aflita, por um canal de comunicação. Esperança de mudança no padrão das relações, preocupação com o risco e as consequências de uma frustração.
Biden convocou uma reunião de cúpula, que começa hoje, para reafirmar, em alto nível, a retomada dos compromissos dos Estados Unidos com os esforços internacionais para enfrentar as mudanças climáticas. Ele pretende ampliar as metas de redução das emissões de gases que provocam o efeito estufa. Para isso, espera que outros grandes emissores globais, como o Brasil, também façam mais.
Nas últimas semanas, a equipe de John Kerry, assessor especial de Biden para a política climática, manteve negociações reservadas com o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, em busca de um acordo bilateral para que o Brasil reduza o desmatamento na Amazônia em troca de compensação financeira por parte dos EUA ou de empresas americanas.
A princípio, tudo normal. Governos negociam com governos e os EUA têm poder de pressão para convencer qualquer um ‒ até Jair Bolsonaro ‒ a optar pela via da negociação. No mérito, nada muito diferente de outros acordos passados, como o do Brasil com a Noruega, que resultou no Fundo Amazônia, cujo funcionamento foi paralisado pela atual administração federal. A novidade, então, seria a mudança de postura do Brasil, atrás de uma saída para o seu inédito isolamento político, agravado com a derrota de Trump e a posse de Biden.
A esperança começou a ceder espaço para a preocupação quando circularam informações de que hoje, ou até o final da cúpula, já seria anunciado o tal acordo bilateral, sem que qualquer outra parte interessada tivesse conhecimento sobre seus termos. Por exemplo, os governos dos estados amazônicos, alijados do Conselho Nacional da Amazônia e afetados com a paralisação injustificada do Fundo Amazônia. Ou os povos indígenas e outras populações tradicionais, que têm direitos sobre grande parte da floresta e são essenciais para qualquer projeto de desenvolvimento sustentável da região.
Mas a preocupação não se limita à falta de transparência nas tratativas e à precipitação de um eventual acordo bilateral, estendendo-se a questões de fundo. Enquanto o governo sinaliza reduzir o desmatamento nas conversas, sua bancada move-se, no Congresso, para legalizar o roubo de terras públicas, a exploração predatória dos recursos naturais das Terras Indígenas e diminuir o rigor no licenciamento ambiental das obras de infraestrutura, inclusive na Amazônia.
Foi neste contexto que atores interessados enviaram cartas a Biden, reconhecendo a legitimidade da sua intenção de fortalecer a agenda climática, mas fazendo-o ver que, para a efetividade de uma iniciativa para reduzir o desmatamento, é imprescindível a participação dos diversos segmentos envolvidos.
Na semana passada, 24 governadores, inclusive os da Amazônia, enviaram carta a Biden propondo parcerias em questões ambientais. Eles têm interesse em programas bilaterais de cooperação com estados americanos, previstos na política de clima do presidente dos EUA.
Um mês antes, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) já havia enviado carta ao Biden, pedindo que os índios sejam diretamente ouvidos nas discussões sobre a Amazônia. Como detentores de direitos originários reconhecidos sobre 25% da região, eles têm sido agredidos pelas ações do governo, que se nega a demarcar e proteger as suas terras, como exige a Constituição. No início do mês, 200 organizações da sociedade civil brasileira também enviaram carta a Biden, advertindo-o dos riscos para a sua própria política ao negociar com Bolsonaro a portas fechadas.
As mensagens dos índios e das ONGs repercutiram com força nos EUA, abrindo os olhos dos negociadores para os riscos inerentes às propostas brasileiras. Assessores de Kerry abriram diálogo com a Apib sobre a questão climática, embora o governo brasileiro tenha exigido a presença, nessa conversa, de índios cooptados, que não tinham muito o que dizer.
Ainda no início do mês, 15 senadores norte-americanos, inclusive ex-candidatos à Presidência e dirigentes de comissões-chave no Congresso, escreveram a Biden, opondo-se tanto ao anúncio de acordos sem consulta prévia a índios e ONGs como à destinação de recursos ao governo brasileiro antes de reduções efetivas do desmatamento.
Nesta semana, Leonardo DiCaprio, Katy Perry, Caetano Veloso e muitos outros artistas também se dirigiram a Biden no mesmo sentido.
Aqui entre nós, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, tem dito que espera receber US$ 1 bilhão de empresas americanas, por meio do mercado de carbono, para investir no pagamento por serviços ambientais. Porém o “Floresta Mais”, programa que ele desenhou para este fim, assume-se como de caráter “voluntário”, sem relação com metas de redução do desmatamento, e privilegia proprietários e empresas agropecuárias para remunerar, inclusive, a conservação de Reservas Legais e Áreas de Preservação Permanente (APPs), uma obrigação legal.
Em troca, Salles oferece zerar o desmatamento ilegal até 2030, uma proposta capiciosa em vários sentidos. Legalizando atividades predatórias, como pretende o governo, o desmatamento poderia continuar em alta sem afetar essa meta. A ilegalidade que restasse continuaria sendo oficialmente tolerada por quase uma década, sendo que o mandato de Bolsonaro só vai até o ano que vem, o que não o obrigaria à entrega de resultados.
Cobrado por resultados imediatos, Salles propõe a adoção, como parâmetro de cálculo para reduções e compensações, da taxa média de desmatamento dos últimos cinco anos, inflada pelo salto promovido no próprio mandato de Bolsonaro. Dá uma média 18% maior do que a dos anos anteriores aos do governo atual. Ou seja: Salles quer licença para continuar desmatando e compensações por eventuais oscilações na sanha devastadora.
A carta mais emblemática enviada a Biden foi assinada pelo próprio Bolsonaro. Com sete páginas e muitas generalidades, chega a afirmar que povos indígenas e ONGs ‒ um câncer a ser extirpado, segundo a retórica presidencial ‒ serão ouvidos sobre as políticas para a Amazônia. Pode ser que esteja se referindo a índios cooptados por frentes predatórias e a certos grupos evangélicos pentecostais. Ora sugere rendição, ora empulhação.
O significado maior da carta presidencial está no fato de ter sido enviada, e não no que está nela escrito. Bolsonaro está acuado e a reunião com Biden, assim como a negociação com Kerry, têm um ganho imediato por si. É um recuo tático, para ganhar algum tempo e aliviar a pressão. Embora a carta reafirme a expectativa de compensação financeira, o que importa é enrolar Biden durante este ano. Em 2022, já teremos eleições e fim de mandato.
Fatos ocorridos durante as negociações e logo antes da reunião de cúpula reforçam a suspeita de falta de seriedade na posição brasileira. Salles confrontou a Polícia Federal para liberar milhões de metros cúbicos de madeira apreendidos por exploração ilegal e está sendo acusado, no Supremo Tribunal Federal (STF), de advogar em favor de interesses privados e contra o patrimônio público.
Bolsonaro, por sua vez, recebeu, em palácio, índios agenciados por empresários da mineração ilegal para pressionar contra operações de fiscalização e pela legalização das atividades predatórias. Salles e Bolsonaro estão se lixando para o impacto desses episódios nas negociações. Além disso, o desmatamento na Amazônia, em março ‒ dado oficial mais recente disponível ‒ foi o maior da década para este mesmo mês.
O conjunto das cartas a Biden, que têm significados próprios e diversos, revela um país dividido, abalado, desprovido de projetos e à procura de um oráculo, ou de qualquer luz, ou ajuda, para sair do fundo do abismo. Mas também mostra que a nova iniciativa climática dos EUA, com as devidas cautelas, pressiona governos e ajuda a alavancar mudanças no Brasil e no mundo, urgentes e essenciais.
Vamos ver o que acontece na reunião desses dois dias. É improvável o anúncio de qualquer acordo bilateral. Devem haver sinalizações dos 40 países convidados sobre o que levarão à próxima conferência internacional sobre o clima, prevista para novembro, em Glasgow, Escócia. O avanço na posição dos EUA alimenta esperanças e estimula as negociações, mas novos acordos ainda dependerão de empenho, transparência e credibilidade para amadurecer.
Por outro lado, os povos da floresta, organizações civis, artistas, cientistas e comunicadores, que têm sido duramente atacados desde o início do atual governo, estão emergindo dos embates como protagonistas políticos qualificados para a construção do “day after” da tragédia nacional. Nesse caso, articularam-se em redes parceiras com pessoas e organizações dos EUA, muito atentas aos primeiros movimentos do governo que elegeram. Exercício de aliança para novos tempos!