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Ele bate, mas volta e diz que ama. Despreza, humilha, quer sempre tudo, só para ele, mas não é capaz de resistir à beleza dela. Ele não hesita em machucar, mas espera sempre, em troca, gratidão e submissão. Diagnóstico fácil: trata-se de uma relação abusiva, mas nesse caso, não entre um homem e uma mulher, mas entre o ser humano e a natureza. É assim, de forma abusiva, abusada e ambígua, que nos relacionamos com a natureza.
Quem, no meio dessa pandemia e dessa enxurrada de péssimas notícias, não fica feliz quando vê uma cena de natureza como as inúmeras fotos e vídeos nas redes sociais mostrando cervos nas cidades, peixes em lugares onde esses já não existiam, pássaros voando contra um céu limpo e até mesmo pandas fofos se reproduzindo pela primeira vez, em zoológicos vazios? Imagens da natureza possuem grande efeito positivo sobre nós, porque nos sentimos consolados e admirados com a beleza e a diversidade existentes no planeta.
Isso não nos impede, claro, de explorar infinitamente a natureza quando se trata de atender as nossas necessidades ou as necessidades que criamos para nós mesmos e que acreditamos indispensáveis. Atualmente, quatro bilhões de pessoas vivem em cerca de 1% da massa terrestre do planeta. Mas não é esse 1% do território do mundo, as cidades, o responsável pelo maior impacto sobre a natureza e, sim, a produção de mercadorias e serviços para sustentar nossa espécie, do jeito que ela vive: um volume altamente desnecessário de coisas para uma parte pequena da humanidade e menos do que o necessário para os outros.
Ainda assim, o resultado é um impacto tremendo porque, como espécie, lidamos com a natureza de forma predatória. Tudo que compõe a nossa existência material, da água potável ao petróleo, dos alimentos aos eletrônicos, das roupas aos cosméticos, utiliza de forma abusiva recursos naturais do planeta.
Talvez a pandemia da vez seja uma oportunidade para repensarmos essa relação predatória. O que é certo é que a pandemia nossa de cada dia permite enxergar melhor as interconexões existentes no planeta. Ao percebermos como a presença de morcegos, fora de seus ambientes naturais, pôde afetar a nossa saúde, conduzindo a essa pandemia, passamos a vislumbrar a complexidade das relações existentes na natureza. Cada vez fica mais claro que nossas ações, destruindo os ambientes naturais, transformando a vida dos animais e modificando o clima, rompem o equilíbrio das relações entre as espécies e criam condições para a disseminação de doenças, reduzindo as barreiras entre os animais que hospedam naturalmente vírus e nós, que podemos passar a ser infectados.
Essa pandemia do coronavírus surgiu na China, mas diversos outros lugares poderiam ser os epicentros de novas epidemias. Alguns, inclusive, são, como por exemplo o Congo, que alberga no momento um surto de Ebola. Um estudo realizado, em 2008, pela pesquisadora Kate Jones e sua equipe, da University College de Londres, revelou que das 335 doenças que emergiram entre 1960 e 2004, pelo menos 60% tinha origem animal. O estudo também mostrou que esse número crescente de doenças de origem animal está relacionado com as transformações ambientais. A destruição das florestas pelo desmatamento, mineração, garimpo e construção de estradas, a rápida urbanização e o crescimento populacional estão colocando em contato mais estreito pessoas e animais que nunca estiveram próximos.
O quebra-cabeças da expansão das probabilidades de surgimento de novas epidemias deve levar em conta também o crescente conhecimento científico sobre os vírus. Em um artigo recente, Susan Weiss, uma virologista que trabalha com coronavírus há mais de 40 anos, conta que a comunidade de pesquisadores de coronavírus ficou chocada ao descobrir que o agente causador do surto de SARS, em 2003, era um coronavírus. Até aquele momento, os coronavírus conhecidos, que infectavam a nossa espécie, causavam apenas gripes, sendo responsáveis por cerca de um terço dos resfriados comuns na humanidade. Depois da epidemia de SARS e ainda antes da pandemia atual, dois outros coronavírus que infectam humanos foram identificados e as pesquisas também mostraram que os morcegos são hospedeiros de muitos coronavírus parecidos com o da SARS.
Esses resultados ajudam a colocar mais algumas peças no quebra-cabeças. Eles mostram que a soma da destruição dos ambientes naturais, as condições criadas por nós, o comportamento dos morcegos, o fato deles hospedarem muitos coronavírus e a concentração de pessoas nas cidades leva a um cenário ideal para novas doenças emergirem.
A possibilidade que a pandemia nos oferece de encarar a complexidade das relações existentes na natureza não deve nos iludir, porém, conduzindo-nos a interpretações e soluções falsas, fáceis e convenientes. Por exemplo, a aparição de animais em ambientes onde eles não eram mais observados é um reflexo da desaceleração das nossas atividades, mas nem de longe pode isso pode ser visto como uma recuperação da natureza. As intrincadas relações entre as espécies e seus ambientes não se recuperam rapidamente. Certamente, uma pandemia que coloca cerca de metade da população do mundo em quarentena e que provoca a diminuição de parte das atividade predatórias que nossa espécie pratica cotidianamente tem um efeito sobre as outras espécies que compartilham o planeta. Não é o caso, contudo, de respirar aliviado e acreditar que basta o mundo parar por uns poucos meses e isso será suficiente para que a natureza se recupere dos estragos produzidos pela nossa espécie.
Um exemplo vem das florestas tropicais: quanto tempo sem desmatamento é necessário para que a floresta se recupere? Floresta não é o coletivo de árvores. Floresta é o coletivo de interações entre organismos diversos. Não basta ter um conjunto de árvores, mesmo que ele seja muito grande, para se ter uma floresta. Vale lembrar que na Amazônia essa contagem, de quanto tempo a floresta demora para se recuperar depois de interrompido o desmatamento, está longe de começar: enquanto vivemos a crise de saúde, as atividades predatórias só aumentam por lá, numa combinação explosiva de aproximação do novo coronavírus dos povos da floresta, de aumento escandaloso do desmatamento e da criação de condições para o surgimento de novas doenças.
Como em qualquer relação abusiva, os predadores sempre fazem promessas e fingem que vão mudar, principalmente em momentos de crise. Soluções fáceis, que prometem mudanças, mas zelam para que tudo permaneça como está, surgirão. Essa tem sido a regra do capitalismo predatório: mudar para continuar o mesmo, explorando a natureza e boa parte da humanidade.
A ilusão de que basta uma desaceleração para que a natureza se recupere pode funcionar como uma sensação de que nem tudo está perdido. A qualquer momento podemos recuperar a natureza, não precisamos fazer nada diferente do que fazemos. Essa ilusão se combina com diversas outras que compõem o intrincado quebra-cabeças das possibilidades de novas epidemias. Entre elas, está a ideia de que bastam pequenas alterações nas nossas formas de produção e o problema estará resolvido e a ameaça debelada. Porém o que as recentes epidemias nos mostram é que essa é a receita certa para o surgimento da próxima pandemia.
Fechar mercados como o de Wuhan, mas não resolver o problema do tráfico de animais e da sobrevivência das pessoas que dependem dele. Aumentar o uso de antibióticos nas fazendas de produção de carne e nos tanques de aquicultura, e não levar em conta a crescente resistência dos microorganismos. Promover um discurso de sustentabilidade ambiental, mas continuar desmatando e expandindo áreas de monoculturas, alegando que são necessárias para alimentar a humanidade. Usar e se apropriar de tudo que é alternativo para pasteurizar e homogeneizar o mundo, nos convencendo que essa é a única forma de viver.
A pandemia nossa de cada dia nos mostra, porém, que isso não é verdade e que esses arremedos de soluções não são soluções aceitáveis. Em um texto recente, Els Lagrou nos conta como o povo Huni Kuin, do Acre, percebe as doenças: "as pessoas adoecem porque a caça e os peixes, mas também algumas plantas que consumimos e outros seres que agredimos ou com os quais interagimos, se vingam e mandam seu nisun, dor de cabeça e tonteira que pode resultar em doença e morte.” Um conhecimento profundo da natureza, a compreensão de que ela não se submete. Um saber acumulado sobre os hábitos, sobre o potencial patogênico dos animais e um respeito pela caça, para que, como diz Els Lagrou, ela não se vire contra o caçador.
Se sairmos dessa crise para vivermos o mesmo mundo, a mesma relação abusiva que vivíamos, não honraremos os que se foram, como disse recentemente Ailton Krenak, nem teremos aprendido com eles a ser quem somos. O aprendizado de ser quem somos deveria passar por pisar suavemente na Terra, entender que somos fruto de interações com outros organismos fora e dentro de nós, escutar o que os povos indígenas dizem há 500 anos no Brasil e respeitar a vida de todos.
Se sairmos desse presente sem entendermos que esse presente pode ser um presente para uma melhor compreensão do futuro, pouco duraremos, uma epidemia sucederá a outra, a crise climática e suas consequências se abaterão sobre nós e o mundo se tornará demasiadamente hostil para a humanidade.
Diz Ailton Krenak que se estamos numa espécie de último front, na última batalha dessa civilização que acha que pode comer o planeta e depois ir para Marte, nosso tempo acabou. Sim, acabou, mas, talvez, nos reste uma só bala na agulha, a esperança embutida no poema de Carlos Drumond de Andrade, onde depois de "experimentar, colonizar, civilizar, humanizar” todos os planetas, numa eterna viagem para fora de si, o ser humano se voltar, enfim, para si mesmo, para por “o pé no chão de seu coração” e, depois de tudo, descobrir “em suas próprias inexploradas entranhas, a perene, insuspeitada alegria de conviver."