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Inspiração até às últimas consequências

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Nurit Bensusan, assessora do ISA e especialista em biodiversidade

“Ora, algumas vezes cheguei a acreditar em até seis coisas impossíveis antes do café da manhã”, diz a Rainha Branca para a surpresa Alice, que argumenta que “não se pode acreditar em coisas impossíveis”. Evidentemente, isso não é verdade, pois há uma significativa parcela da humanidade que acredita em coisas aparentemente impossíveis. Lewis Wolpert escreveu, em 2006, um livro cujo título é uma referência a essa afirmação da Rainha Branca (“Six impossible things before breakfast”), onde explora as origens evolutivas da crença e discute até que ponto acreditar, mesmo em coisas impossíveis, é um componente fundamental para as sociedades funcionais.

Uma outra interpretação possível para a afirmação da Rainha Branca é pensar em coisas impossíveis que podem se tornar possíveis. Coisas que são impossíveis mas às quais se pode dar alguma forma, alguma concretude e, com sorte, convertê-las em coisas reais. Sidarta Ribeiro, pesquisador do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte que estuda sonhos, insiste em dizer que devemos prestar mais atenção nos nossos sonhos e que, com eles, colocamos em marcha um mecanismo de simulação de futuro.

A Rainha Branca tem razão quando diz a Alice que não temos prática em pensar coisas impossíveis, principalmente nessas que podem se tornar possíveis. Há que se praticar, sonhar, desapegar do cotidiano. Se assim não fosse, voaríamos de um lugar para o outro hoje? Teríamos eletricidade? Internet? Submarinos? Telefones celulares? Se é possível pensar em coisas que parecem impossíveis em termos de tecnologia, mas que se tornam concretas, deve ser possível também pensar em coisas aparentemente impossíveis, mas realizáveis, quando se trata de compartilhar a nossa existência com a natureza de uma forma solidária.

Ao longo da curta história da nossa espécie, a percepção que temos da natureza foi se transformando. Éramos, e assim nos enxergávamos, parte integrante da natureza, uma espécie de animal a mais, em um mundo diverso, pleno de outros animais, plantas e outros organismos. Com o tempo, passamos a acreditar que éramos outra coisa, melhor que as outras espécies, mas ainda temíamos a natureza: animais selvagens, plantas venenosas, doenças estranhas, fenômenos climáticos inexplicáveis, tudo era mistério. O mundo girou e girou, as explicações científicas começaram a criar raízes e cada vez mais, a humanidade passou a se acreditar autosuficiente. Não apenas como algo a parte e melhor, mas como uma espécie que só depende de si mesma e que habita um planeta onde as outras espécies são recursos a serem explorados para garantir sua sobrevivência.

O pouco que entendemos da natureza já nos permitiu usá-la para inúmeros fins. Há o óbvio: extrativismo, agricultura, criação de animais para o abate, madeira para construção, celulose para papel, lãs, peles e fibras para vestimentas. Há o não-tão-óbvio: plantas para cura, combustível fóssil para energia, substâncias presentes em outros organismos como venenos ou como remédios, insetos para a produção da seda e de corantes. Há o não-óbvio: enzima presente numa bactéria usada para biotecnologia que acaba em testes de paternidade ou testes de detecção de coronavírus (leia aqui), anticorpos de lhama testados para um tratamento de Covid-19, sementes que grudam na roupa como precursoras do velcro e proteínas de mexilhões como fonte de uma supercola. E, há o absolutamente não-óbvio: lâmpadas de LED inspiradas em vagalumes, telas que mimetizam a forma com que as asas das borboletas refletem as cores, modos de coletar água a partir de gotas da neblina que imitam os besouros da Namíbia, turbinas eólicas inspiradas na forma que os cardumes se deslocam e que reproduzem as protuberâncias das barbatanas das baleias jubartes. Os exemplos são inúmeros mas não representam nada diante da inspiração que a natureza poderia compartilhar com a humanidade se fosse melhor compreendida, como igual, com respeito, solidariedade, responsabilidade e reciprocidade.

Pesquisar e entender, não destruir

Isso se traduz em pesquisar, examinar e entender ao invés de destruir. A natureza revela inúmeras soluções para os problemas humanos, não apenas possui substâncias, formas e moléculas que podem inspirar medicamentos, cosméticos, produtos para a indústria química ou para a biotecnologia. Em um capitulo do livro Revolução das Plantas: Um Novo Modelo para o Futuro, Stefano Mancuso afirma que na natureza as organizações distribuídas, sem centros de controle, são sempre as mais eficientes. Ele cita diversos estudos de comportamento de grupos, sejam eles de insetos sociais, sistemas radiculares de plantas ou bando de pássaros, que mostram que as decisões tomadas por um grande número de indivíduos são quase sempre melhores do que as adotadas por poucos. A capacidade dos grupos de gerar soluções para problemas complexos é surpreendente, mas já conhecida da humanidade. Programas de computador de fonte aberta, projetos como a wikipedia e agora o esforço em busca de tratamentos, testes e vacinas para a Covid-19 são exemplos. Por que não adotar esse modelo para sistemas de gestão e mesmo para a democracia, numa tentativa de resolver seus impasses?

Numa entrevista recente, o sociólogo Jeremy Rifkin afirma que agora começa a era da “glocalização”. Os processos serão mais locais e o planeta será tratado e visto de outra maneira. Ele aposta que as grandes empresas desaparecerão e as que continuarem terão que trabalhar com outras pequenas e médias empresas com as quais estarão conectadas em todo o mundo. Ao invés da competição, todos trabalhariam juntos. É uma ideia bem interessante e inspirada na descentralização dos sistemas naturais e que pode vir a funcionar.

Diversidade

Uma das consequências de se inspirar na natureza para muito mais além do que fazemos hoje é que haverá lugar para a diversidade. Qualquer um que olhe a sua volta, verá que a natureza se expressa numa multitude de formas que se traduz em um vasto conjunto de maneiras de lidar com os desafios que o ambiente apresenta aos organismos. Por exemplo, os animais, em geral, usam a estratégia de se deslocar para evitar os perigos (comportamento vulgarmente conhecido como fuga), já as plantas, que não se movimentam, desenvolveram um outro arsenal de possibilidades para reagir aos riscos que o ambiente apresenta, tal como a aposta radical na descentralização, de forma que mesmo quando partes de seu corpo são predadas, arrancadas ou danificadas, o indivíduo consegue sobreviver.

Há animais que têm sistemas nervosos descentralizados, sem um cérebro como concebemos comumente, como o polvo, e são inteligentes. Há aqueles que vivem em colônias que parecem funcionar como um grande organismo, como formigueiros e colmeias. Há seres que produzem energia como as plantas, há outros que consomem energia, como os animais. Há aqueles que mudam de sexo conforme a necessidade da população, como o peixe-papagaio. Há os que geram milhares de descendentes, como os insetos, e há os que geram apenas um, como alguns mamíferos. A diversidade é gigantesca e um convite a pensar nas possibilidades de lidar com o ambiente que nos circunda.

Essa diversidade, porém, está desaparecendo rapidamente. Estima-se que a perda chegue a um terço das espécies existentes no mundo até 2070. Como se inspirar em animais e plantas que já desapareceram? Uma visita a alguns museus de história natural do planeta, como a Grande Galeria da Evolução, em Paris, dá uma dimensão das oportunidades de inspiração perdidas quando contemplamos animais e plantas que já se extinguiram, inclusive por nossa causa.

Transformar o planeta em um lugar diverso, com um mosaico de formas de estar no mundo é uma ideia impossível que poderia se tornar possível no mundo pós pandêmico, se estivermos dispostos a entender que nem a régua tecnológica, nem a acumulação de bens devem ser a medida do êxito do modo de viver.

O planeta, assim, poderia se tornar um lugar onde seja possível fomentar a economia da floresta de forma a manter as formas de vida das comunidades que ali vivem. Um lugar onde as marisqueiras podem viver de suas atividades sem riscos e garantindo o bem-viver de suas famílias. Um mundo onde povos indígenas em isolamento voluntário sejam respeitados e deixados em paz. Onde haja lugar para a diversidade de feijões, batatas, mandiocas e maças, e não apenas espaço para monoculturas agrícolas e da mente. Um mundo onde haja lugar para todas as espécies.

Ainda estou praticando, não tenho a habilidade da Rainha Branca, mas consigo pensar na manutenção da diversidade, algo que parece impossível no mundo das monoculturas, mas que pode ser tornar possível. Sonhar em viver em um mundo diverso é levar a inspiração da natureza até suas últimas consequências.

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