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O Diário Oficial da União publicou portaria que concede aposentadoria à Dra. Deborah Duprat, encerrando seu ciclo como membro do Ministério Público Federal (MPF), após segundo mandato como Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão. Com mais de 30 anos de vida profissional dedicada a transformar dor e lágrimas em luta e esperança, Deborah se despede deixando um honroso legado para todos que militam no campo dos direitos humanos, na defesa da democracia e da cidadania.
É possível dizer que nesses anos ela ajudou a segurar o céu, contribuindo com ideias e ações para adiar o fim do mundo.
Deborah lutou arduamente para romper a colonialidade de poder, que estruturou as relações de nosso país desde a sua fundação e que ainda hoje se faz presente nas instituições e no tecido social, resultando em desigualdades sociais, raciais e de gênero. Não à toa, ocupou os cargos como Coordenadora da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão da PGR, que trata da matéria de povos indígenas e comunidades tradicionais e Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), com dedicada atenção e maestria técnico-jurídica. No exercício de sua profissão, Deborah sempre recuperou a dignidade daqueles aos quais as estruturas coloniais lhe negam a condição de cidadão: povos indígenas, comunidades tradicionais, o povo negro, população LGBTI, as mulheres e muitos outros.
Deborah assumiu o compromisso, durante toda a sua trajetória, de fazer valer o horizonte pluralista e diverso que a Constituição Cidadã de 1988 estabeleceu, atuando em diversos casos, como o reconhecimento do casamento em relações homoafetivas, a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e a luta por garantia de justiça de transição e reparação pelas marcas de uma tirania oriunda da ditadura militar. Por isso, atuou intensamente para frear qualquer tipo de obscurantismo que, hoje em dia, volta a nos assombrar.
Sem se isolar entre as paredes herméticas da institucionalidade, Deborah nunca perdeu a mirada da luta que vem da rua, dos asfaltos, dos rios, dos campos e das florestas. Sempre foi um canal aberto de diálogo com os movimentos sociais, com a sociedade civil e uma interlocutora de suas vozes dentro do Judiciário. Uma voz potente em um ambiente que, em regra, é estruturalmente fechado às demandas sociais. Sua postura plural ajudou a pintar de povo as estruturas fechadas do sistema de justiça.
Em Brasília, Deborah frequentemente aceitava convites para eventos no Congresso, atividades acadêmicas na Universidade de Brasília e celebrações dos movimentos sociais, conciliando com extrema maestria os conceitos teóricos e sem nunca perder de vista a práxis dos movimentos sociais e o compromisso com a emancipação.
Compartilhamos com Deborah muitos momentos em que sua atuação, imprescindível e determinante, resultou em conquistas para nossos parceiros, como no caso da criação da Reserva Extrativista do Rio Xingu, em 2008. A demanda vinha sendo protelada pelo Poder Público, interessado na instalação do complexo Hidrelétrico de Belo Monte, com múltiplas barragens, uma delas planejada no local da desejada Resex.
Deborah teve participação muito importante nesse processo, se reunindo com lideranças como Herculano Costa e Silva e Lauro Freitas. Assim, provocou os órgãos do governo a caminhar com esse caso. A Resex foi decretada no dia do meio ambiente de 2008.
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Hoje, colhemos os frutos do esforço coletivo, em que Deborah teve atuação fundamental: grileiros foram removidos e a Resex Rio Xingu hoje conta com melhor infraestrutura, com uma Unidade Básica de Saúde, uma mini-usina produzindo farinha e babaçu. Também compõe uma rede de articulação regional de produção e comercialização de produtos da floresta, a Rede de Cantinas da Terra do Meio.
Os resultados foram visíveis também na educação. As crianças da rede escolar de ensino fundamental e do ensino médio agora podem estudar dentro da Resex. Em 2020, os primeiros jovens extrativistas ingressaram na Universidade Federal do Pará, em Altamira. Os desafios ainda são muitos, mas as famílias, incluindo a de Herculano e Lauro, finalmente estão em seu território tradicional.
Deborah, como Coordenadora da 6ª Câmara do Ministério Público Federal, teve papel fundamental no julgamento da constitucionalidade do Decreto Federal nº 4887/03, que regulamenta o direito quilombola à titulação dos territórios tradicionais. No plenário do Supremo Tribunal Federal, em sustentação oral, narrou a trajetória histórica da interpretação jurídica do art. 68 do ADCT da Constituição Federal, explicitando o conflito entre interpretações coloniais e libertárias sobre o termo "quilombo". Disse que o direito quilombola está "na Constituição que tem em vista a recuperação do espaço ontológico das diferenças".
Deborah é a face de um Ministério Público que foi projetado em 1988. Um Ministério Público para a cidadania, democrático, aberto à participação e leal aos direitos humanos.
Deborah é uma referência, uma presença na ausência.
A vida é feita de ciclos. A aposentadoria de Deborah junto à Procuradoria da República é um fim, mas também é um começo. Há nela muita sabedoria acumulada e o compromisso com os povos e seus direitos.
Deborah é das pessoas que não são boas porque lutam um dia, mas porque lutam a vida inteira. O horizonte utópico, inclusive o das previsões constitucionais de direitos dos povos, parece sempre estar além de nós. Ele certamente guiará os caminhos de Deborah no novo ciclo que se abre.
Deborah, a você, o nosso muito obrigado.