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Artigo publicado originalmente no site do Sesc-SP.
O xamã yanomami Davi Kopenawa chama de “povo da mercadoria” quem só enxerga na floresta insumos a serem extraídos a qualquer custo.
O "povo da mercadoria" que está mais próximo das comunidades e seus territórios é composto por grileiros, madeireiros, garimpeiros e outros predadores econômicos, hipnotizados pelo consumo, que traduzem a terra e a floresta em alqueires de pasto, metros cúbicos de madeira, gramas de ouro. Trocam o futuro por dinheiro rápido.
Kopenawa, não. Kopenawa vê a Terra-Floresta, "Maxita-Urihi", uma entidade maior, que não pode ter dono. Para o xamã Yanomami, os territórios e seus habitantes, seres vivos e também seres inanimados, são os únicos capazes de segurar o que ele chama de “a queda do céu”, quando o mundo seria tomado por colossais incêndios e inundações, e o ar se tornaria irrespirável.
Não é preciso falar com os espíritos da floresta como fazem os xamãs para entender o que ele quer dizer com isso. Pandemia, emergência climática, rios mortos por lama, comunidades, cursos d'água e animais contaminados com mercúrio, escassez de água, desmatamento, queimadas. Está na cara: é uma espiral da morte.
Esse rastro de destruição do “povo da mercadoria” é dejeto de um modelo econômico que, com total incentivo do Estado brasileiro, valoriza o capital fugidio no bolso para esmagar o modo de vida de povos indígenas e comunidades tradicionais. Uma economia do despejamento.
Porém, mesmo sufocadas e sob perene ameaça de despejo, essas populações resistem e mantêm seus modos de vida com sistemas produtivos tradicionais e, a partir deles, ensinam que existe um outro caminho possível. Uma economia que cuida do presente por um futuro melhor. Uma economia do cuidado.
É de um novo paradigma econômico que estamos falando, um que reconheça e valorize a existência dessas comunidades como elas são, o conhecimento tradicional, o cuidado e as contribuições que elas entregam para a sociedade, como a conservação das florestas e da biodiversidade, o regime de chuvas e a regulação climática.
Nas Terras Indígenas, Reservas Extrativistas e Territórios Quilombolas a biodiversidade vive e se renova pelas mãos das pessoas. Homens e mulheres têm prestígio e celebram valores para além do monetário porque a floresta em pé cura, produz água, remédio e alimento para todos.
Quem vive da floresta sem derrubá-la compartilha um modo de vida, entrega cestas de produtos da floresta, gera renda, fortalece autoestima, quebra preconceitos, gera bem-estar. E recebe pouco ou nenhum incentivo do Estado, pouco ou nenhum reconhecimento da sociedade em geral.
No fim do dia, para piorar, é obrigado a concorrer de igual para igual pelo reconhecimento do mercado, da sociedade e do governo com o poderio econômico de quem é subsidiado a destruir.
Tem gente nessas comunidades e aldeias que teve a casa queimada por grileiro, foi ameaçado, pensou em ir morar na cidade. Mas, com os direitos reconhecidos na Constituição de 1988 e o trabalho valorizado, saiu da depressão e hoje é reconhecido dentro e fora de seus territórios.
A resiliência, porém, está no limite. Pandemia, violência, racismo, fake news, a destruição da agenda ambiental. É muito retrocesso.
Como será o futuro de quem vive e guarda a floresta em pé por todos nós? Por que não aprendemos com eles caminhos de manejar a abundância da diversidade ao invés da escassez das monoculturas? Os povos indígenas e comunidades tradicionais deveriam ser nossa inspiração para o futuro.
A Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira (Cooperquivale), com sede em Eldorado (SP), por exemplo, distribuiu desde o início da pandemia mais de 150 toneladas de alimentos da roça, maioria orgânicos, a cerca de 19 mil famílias vulneráveis.
Os quilombolas do Vale do Ribeira vivem, há séculos, no maior maciço de Mata Atlântica do Brasil. Eles produzem e manejam a abundante biodiversidade regional, traduzida em mais de 70 variedades de produtos, com técnicas que transformam floresta em floresta.
Esse manejo tradicional serve de inspiração para sistemas agroflorestais que estão transformando antigas áreas degradadas pelo gado e monocultura novamente em florestas que geram mais abundância.
No Território Indígena do Xingu (MT), o Movimento das Mulheres Yarang coleta sementes para a restauração das florestas nas bacias dos Rios Xingu e Araguaia. Elas, mulheres do povo Ikpeng, têm uma relação espiritual com a mata. Árvores são mais que árvores, sementes são mais que sementes.
Yarang, na língua Ikpeng, quer dizer formiga cortadeira, símbolo de um trabalho que aos poucos repõe as perdas do despejamento. As Yarang fazem parte de uma rede - a Rede de Sementes do Xingu - que há 11 anos promove o trabalho de coletores indígenas, assentados e urbanos para fazer a água boa voltar aos rios da região.
Outro exemplo para inspirar: indígenas, ribeirinhos e agricultores familiares da região da Terra do Meio, município de Altamira (PA), vivem em um mosaico de áreas protegidas de 8,5 milhões de hectares e estão articulados em rede, produzindo e negociando com transparência uma cesta de produtos da floresta com farinhas, castanhas, óleos, sementes e borracha natural.
Essa rede atua ativamente no reposicionamento de pequenas, médias e grandes empresas em sua relação com a floresta e seus habitantes. O esforço é por uma economia mais acurada que enxergue para além dos produtos, e reconheça os serviços e conhecimentos tradicionais.
Tudo isso sem subsídios do Estado e sem acesso a crédito, lutando pelo cumprimento de leis como a que rege o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que garantiriam seus produtos na alimentação escolar de todas as escolas públicas do Brasil.
Enquanto isso, elas contam apenas com o apoio mais próximo e constante de organizações da sociedade civil, com um ou outro gestor público que entende a potência disso tudo. É desolador ainda ver que o preconceito e o racismo são instrumentos que governam a relação entre essas populações e a sociedade envolvente.
Nas cidades próximas a territórios das comunidades tradicionais é comum ouvir que os alimentos produzidos na Terra Indígena, na Reserva Extrativista ou no Quilombo não servem ao modo de vida "normal", preceito do "povo da mercadoria".
E é mais comum ainda ouvir indígena, extrativista e quilombola dizer que são capazes, sim, de produzir comida boa, que faz bem, protege a floresta e ainda gera renda. Uma luta diária de afirmar seu modo de vida, sua forma de ser e existir no mundo.
A autoestima é um fator tão importante que muitas comunidades veem em seus produtos uma oportunidade de levar o nome do povo adiante. Yanomami, Baniwa, Kisêdjê, por exemplo, hoje também estão presentes em rótulos de cogumelos, pimenta e óleo de pequi e simbolizam uma enorme conquista: o reconhecimento da sociedade.
Na história milenar desses povos, porém, ainda é um soluço de protagonismo e valorização diante do racismo e do apetite brutal dos que querem menos floresta, mais monocultura e mais boi a qualquer custo.
E então, o que fazer? Respeitar a Constituição de 88? Sim. Pressionar por políticas públicas que protejam essas comunidades e seus territórios e valorizem seus sistemas agrícolas tradicionais? Sim. Consumir e valorizar produtos dessas comunidades? Sim. Olhar para o seu portfólio de investimentos e, se tem ouro, por exemplo, saber que está estimulando o garimpo ilegal em terras indígenas? Sim. Ser antirracista? Sem dúvida, sim.
E ter sempre em mente: nós somos “o povo da mercadoria”.
*Jeferson Camarão Straatmann, engenheiro de produção no Instituto Socioambiental, trabalha com a economia da sociobiodiversidade e do cuidado. Roberto Almeida é jornalista do Instituto Socioambiental