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O STF tem jurisprudência sobre o Marco Temporal?

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Juliana de Paula Batista, advogada do ISA

No julgamento do caso Raposa Serra do Sol, em 2009, o Ministro Ayres Britto explicitou no acórdão que “a Constituição Federal trabalhou com data certa — a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) — como insubstituível referencial para o dado da ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene; ou seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.

Na sequência, explicou que “a tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios. Caso das ‘fazendas’ situadas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol”.

O julgamento também fixou 19 condicionantes para nortear a demarcação da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol. Para certa corrente, em especial de advogados e juristas comprometidos com a defesa de setores historicamente contrários aos direitos dos povos indígenas, o Tribunal teria, nesse caso, fixado uma “jurisprudência” e não haveria motivos para modificá-la, sob pena de “insegurança jurídica”.

A afirmação não resiste aos fatos e aos precedentes do próprio STF que, já há alguns anos, apontam em sentido contrário.

Logo após o julgamento do caso, em 2010, a Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) propôs à Suprema Corte a edição da Súmula Vinculante n.º 49, com o objetivo de “afirmar que as terras ocupadas por indígenas em passado remoto a que se refere a Súmula nº 650 são, especialmente, aquelas que, em 5 de outubro de 1988, não apresentam mais ocupação por índios e que o processo de demarcação deve atentar para a necessidade de comprovação da posse da área nesta data”.

A Comissão de Jurisprudência do STF manifestou-se pelo arquivamento da proposta porque “a deliberação sobre a edição de enunciado de súmula a respeito do assunto dependeria da existência de uma inequívoca consolidação jurisprudencial da matéria no exato sentido pretendido pela CNA”. Assim, entendeu que “falta o requisito formal da existência de reiteradas decisões do Supremo ‘sobre essa complexa e delicada questão constitucional, que se encontra, felizmente, em franco processo de definição’”.

Embargo de declaração

O tema sobre os efeitos vinculantes do caso Raposa Serra do Sol foi, também, objeto de Embargos de Declaração, cujo julgamento confirmou se tratar de decisão desprovida de efeito vinculante, de forma que suas balizas não podem ser aplicadas automaticamente em outros casos pelo Poder Judiciário ou por qualquer autoridade pública brasileira. Confira-se o trecho da referida decisão: “a decisão proferida em ação popular é desprovida de força vinculante, em sentido técnico. Nesses termos, os fundamentos adotados pela Corte não se estendem, de forma automática, a outros processos em que se discuta matéria similar. Sem prejuízo disso, o acórdão embargado ostenta a força moral e persuasiva de uma decisão da mais alta Corte do País, do que decorre um elevado ônus argumentativo nos casos em se cogite da superação de suas razões” .

Outros precedentes apontam no mesmo sentido. Em 2012, ao julgar a Reclamação 13.769, o ministro Ricardo Lewandowski reafirmou o posicionamento segundo o qual a Pet. 3.388 refere-se apenas ao procedimento de demarcação da TI Raposa Serra do Sol e não poderia ser invocado contra atos e decisões que digam respeito a qualquer outra área indígena, “porque não houve no acórdão que se alega descumprido o expresso estabelecimento de enunciado vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário, atributo próprio dos procedimentos de controle abstrato de constitucionalidade das normas, bem como súmulas vinculantes, do qual não são dotadas, ordinariamente, as ações populares”.

Em fevereiro de 2017, a Primeira Turma do STF reiterou esse posicionamento ao julgar a Reclamação 14.473. Na oportunidade, o ministro Marco Aurélio enfatizou que as condicionantes fixadas no caso Raposa Serra do Sol não permitem a conclusão de vinculação daquele processo “relativamente à demarcação de outras terras indígenas”. A ministra Rosa Weber adotou entendimento semelhante no MS n.º 31.901/MC/DF, de 11 de março de 2.014.

Como visto, jamais houve qualquer consolidação do precedente, bem como expectativa na sociedade ou no Judiciário de que o entendimento estava sedimentado.

Agora, o STF novamente se debruça sobre as questões envolvendo demarcação de Terras Indígenas no julgamento do RE 1.017.365, com repercussão geral reconhecida à unanimidade pelo Tribunal (Tema 1.031), para a definição do estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena, à luz das regras dispostas no artigo 231 do texto constitucional.

A discussão é legítima, visto que, mesmo que pudéssemos falar na consolidação do precedente do caso Raposa, até mesmo as Cortes Constitucionais mais conservadoras admitem a superação de precedentes.

Segurança jurídica

Argumentos que se valem do princípio da segurança jurídica não podem viabilizar a proteção de apenas um dos interesses envolvidos na discussão. O marco temporal e as condicionantes fixadas no caso Raposa são hoje usados para tentar a anulação de todos os processos de demarcação que estão judicializados, inclusive naqueles em que os indígenas estavam na posse da terra em 5/10/1988. Exigir prova de fatos que ocorreram há mais de 32 anos, quando a prova sequer era pensada, também é motivo de insegurança jurídica para todo e qualquer cidadão.

Para os indígenas, a necessidade de segurança jurídica tem ainda um fator existencial, já que, como o próprio Ministro Menezes Direito, idealizador das condicionantes do caso Raposa, vaticinou: “não há índio sem terra. A relação com o solo é marca característica da essência indígena, pois tudo o que ele é, é na terra e com a terra. Daí a importância do solo para a garantia dos seus direitos, todos ligados de uma maneira ou de outra à terra. É o que se extrai do corpo do art. 231 da Constituição”.

Enfim, retorna-se à pergunta inicial: o STF já tem alguma jurisprudência sobre o Marco Temporal? Ora, se há jurisprudência a ser mencionada é aquela que ficou firmada no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3239, julgada em 8 de fevereiro de 2018, esta, sim, com induvidoso efeito vinculante. Na assentada, o Tribunal decidiu, por oito votos, que a tese do “marco temporal de ocupação” não se aplica às titulações das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades quilombolas.

Os precedentes não podem ser analisados sob ótica seletiva.

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