Essa é a versão antiga do site do ISA que ficou no ar até março de 2022. As informações institucionais aqui contidas podem estar desatualizadas. Acesse https://www.socioambiental.org para a versão atual.
Sob o pretexto de “regulamentar” um conjunto de grandes empreendimentos em Terras Indígenas (TIs) - como a construção de hidrelétricas, a exploração de minério, petróleo e gás - o Projeto de Lei (PL) nº 191/2020, ou “PL da devastação”, aparentemente exclui de seu escopo as terras ainda em processo de demarcação. Numa primeira leitura, o PL só considera como “Terras Indígenas” aquelas que já foram homologadas pelo presidente da República – a última fase do complexo e demorado processo que passa por estudos técnicos, portaria do ministro da Justiça e, por fim, a homologação e o registro.
Mas a verdade é que as terras ainda em demarcação não foram poupadas. O PL exclui expressamente de suas regras essas áreas, que poderão ser liberadas para mineração e construção de hidrelétricas como se fossem terra de ninguém. A Constituição, no entanto, não dá margem a dúvida sobre quais TIs ou fase do processo de demarcação devem ser consideradas para fins de regulamentação de atividades e empreendimentos econômicos. A Carta Magna deixa claro que todas as TIs devem estar submetidas aos mesmos pressupostos nessa regulamentação: a autorização do Congresso, a oitiva das comunidades indígenas afetadas e sua participação nos resultados econômicos dessas iniciativas.
Escalonar direitos de acordo com a fase do processo de demarcação, deixando que todas as áreas não homologadas possam ser usadas e abusadas como se não fossem TIs, além de afrontar a letra e o espírito da Constituição, ignora a jurisprudência já consolidada do Supremo Tribunal Federal (STF). “[O direito dos índios às suas terras] independe da conclusão do procedimento administrativo de demarcação na medida em que a tutela dos índios decorre, desde sempre, diretamente do texto constitucional”, afirmou o ministro Luiz Fux no julgamento da Ação Civil Originária (ACO) nº 312/BA, de 2013.
As comunidades indígenas não podem ser responsabilizados pela demora do Estado em exercer sua competência, prevista no Artigo 231 da Carta Magna, de demarcar as TIs. Os direitos dessas populações estão a descoberto porque o Estado não lhes garantiu o que a Constituição determinou: suas terras.
Além de ignorar essas premissas constitucionais básicas, o PL vai além do permitido pela Constituição e valida todos os requerimentos minerários que tenham sido solicitados ou protocolados antes da homologação das TIs e antes da regulamentação que o PL pretende fazer. Isso também é inconstitucional, já que todos esses requerimentos estão abarcados pela nulidade absoluta contida no artigo 231, § 6º da Constituição.
De acordo com dados do Programa de Monitoramento de Áreas Protegidas do ISA, há 362 processos minerários incidentes em 62 TIs que ainda estão em demarcação. Se o PL 191 for aprovado, esses processos seriam automaticamente validados. Além disso, existem outras 175 áreas ainda em demarcação sem processos minerários incidentes e que estariam abertas à requisição de exploração mineral. Daí o total de 237 territórios com demarcação não concluída que poderiam ser alvo desse tipo de atividade sem as restrições previstas no projeto de lei.
Quando falamos em "processos minerários" nos referimos a alvarás e licenças de exploração, áreas “em disponibilidade” para a exploração mineral, requerimentos de lavra garimpeira e pesquisa de minérios protocolados ou já aprovados na Agência Nacional de Mineração (ANM).
Além disso, outras 78 TIs homologadas ou reservadas também veriam validados 2.562 processos minerários protocolados ou concedidos antes da conclusão de sua regularização.
Significa dizer que, do total de 3.843 processos minerários incidentes em terras indígenas constantes do banco de dados da Agência Nacional de Mineração (AMN), 66% dos requerimentos e títulos seriam liberados das exigências formais da lei e, por incrível que pareça, também das condições expressas na Constituição. Na prática, o PL pode significar, portanto, a desregulação ou uma espécie de “liberou geral” para os grandes interesses econômicos em 315 TIs, ou seja, 43% do total de 723 TIs do país.
O resultado prático é que a quase totalidade das áreas com formações geológicas propícias à ocorrência de jazidas minerais importantes estaria recoberta por interesses minerários reconhecidos à revelia da lei. Aliás, que só se aplicaria a situações excepcionais.
Em tempos de uma pandemia como a do coronavírus, não é demais lembrar que, na prática, o PL 191 abre de forma descontrolada 315 TIs a grandes empreendimentos e também ao garimpo, expondo populações que, mesmo com um histórico de contato com a sociedade nacional mais antigo, ainda assim apresentam risco epidemiológico mais alto em vários casos. Por si só, a imigração descontrolada provocada por esses projetos e atividades agrava as condições sanitárias e a sobrecarga sobre os já precários serviços de saúde. Ainda ontem, o Intercept Brasil publicou a informação de um caso suspeito de coronavírus em um funcionário da empresa Mineração Rio do Norte, subsidiária da Vale, no interior do Pará, colocando em risco populações quilombolas com algum grau de isolamento.
Chama atenção que, ainda segundo dados do Programa de Monitoramento de Áreas Protegidas do ISA, 25 TIs com registro de índios isolados podem ser liberadas para a exploração mineral. Essas populações são ainda mais vulneráveis a doenças contagiosas comuns entre não índios, como gripe e sarampo. Há não muito tempo, durante a ditadura, povos inteiros foram quase dizimados em função da contaminação pelo contato forçado oriundo da implantação de grandes empreendimentos econômicos, como a construção de estradas.
Igualmente, não é demais lembrar que os últimos dois grandes crimes socioambientais sofridos no Brasil, com grande número de vítimas e um prejuízo social, econômico e ambiental incalculável - Brumadinho e Mariana, ambos em Minas Gerais - foram provocados pela atividade da mineração.
Nesse sentido, o PL constitui verdadeira ameaça à sobrevivência física e cultural dos povos indígenas.
Mas não é só. O parágrafo 3º do artigo 37 da proposta também libera a pesquisa e lavra mineral, bem como aproveitamento hidráulico, em caráter provisório em todas as TIs.
Já o artigo 37, parágrafo 6º, pode ser lido como um verdadeiro “olé” no Congresso Nacional. Sua “competência exclusiva” para autorizar as atividades previstas no PL devem ser exercidas em quatro anos. Caso contrário, essas atividades serão consideradas autorizadas. Imagina se a moda pega. O Congresso passará a ser o “carimbador” de tudo aquilo que não foi discutido, deliberado e sequer votado. No caso, deixar passar dispositivo que chancela um “quem cala consente” servirá apenas para gerar precedente para o enfraquecimento institucional do parlamento. Espera-se que, durante o processo legislativo, o Congresso faça valer suas prerrogativas, rejeitando mais esse expediente espúrio.
Só faltava, mesmo, que o Executivo, omisso quanto à sua responsabilidade pela demarcação das TIs, se valesse da própria omissão para desconstituir todos os demais direitos dos povos indígenas por meio de um projeto que, sob a justificativa de regulamentar atividades econômicas nessas áreas, escancara esses territórios de forma predatória.