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A Constituição de 1988 atribuiu ao Poder Público a obrigação de titular as terras ocupadas por comunidades remanescentes de quilombos. Essa determinação pretendeu resgatar a dívida histórica do País com os afrodescendentes que se refugiaram em comunidades fugidas da escravidão ou formadas após a Abolição pelos que não foram absorvidos pelo regime assalariado. Desterradas de suas origens, elas fixaram-se ou permaneceram em locais mais ou menos remotos, de forma quase invisível, e resgataram ou reconstruíram sistemas de subsistência e de compreensão do mundo que se traduzem em inúmeros conhecimentos tradicionais, manifestações culturais, na nossa música e culinária, na nossa cara.
Após quase 25 anos da promulgação da Constituição, só 207 comunidades foram tituladas por órgãos federais ou por órgãos estaduais em parceria com órgãos federais, segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) – não há dados consolidados sobre títulos concedidos só por instituições estaduais (veja tabela). Estimativas apontam, porém, que os quilombos podem chegar a aproximadamente três mil comunidades no Brasil (saiba mais). Aquelas já certificadas pela Fundação Cultural Palmares somam mais de 1,7 mil (veja aqui).
Mesmo considerando casos de mais de uma comunidade no mesmo território, não é difícil constatar a letargia constrangedora do Poder Público – em particular, do Incra, responsável por regularizar essas áreas na esfera federal – na parte mínima que lhe coube do resgate dessa monumental dívida histórica.
A taxa de titulação de quilombos pela União caiu drasticamente no mandato de Dilma Rousseff – embora seja preciso ressalvar a atuação da Secretaria Geral da Presidência da República em algumas tentativas de mediação ou solução de conflitos. Dilma titulou só 632 hectares até agora, enquanto a administração Lula titulou 21,4 mil hectares, entre 2003 e 2007, e 38,2 mil hectares, entre 2008 e 2010. O governo FHC titulou 415,2 mil hectares, em oito anos.
O argumento do governo atual de que é preciso concluir a regularização fundiária das terras já tituladas, antes de titular novas áreas, não se sustenta diante da situação de risco físico e social em que vivem as comunidades. É preciso avançar nas duas frentes simultaneamente.
O louvável reconhecimento oficial, desacompanhado da titulação das terras, retira os quilombos da sua invisibilidade histórica para transformá-los em sujeitos de direitos a serem reconhecidos de imediato. A lentidão nos processos de titulação, no entanto, expõe essas populações a todo tipo de interesses contrariados, agudizando conflitos e colocando sob ameaça a vida dos quilombolas. Enquanto o ritmo das titulações cai, crescem os números de casos de assassinatos, invasões, casas queimadas, roças destruídas, despejos, que atingem mesmo as poucas comunidades com terras já tituladas.
Relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT) aponta que, em 2012, dois quilombolas foram assassinados no Brasil. Em 2011, três foram assassinados, outros três sofreram tentativa de assassinato e 77 foram ameaçados de morte. Em 2010, foram registradas 71 comunidades em conflito, abrangendo 6,9 mil famílias; já em 2011, havia 100 comunidades em conflito, envolvendo 7,6 mil famílias (leia o documento).
Alguns casos emblemáticos
Não faltam casos grotescos, de norte a sul, envolvendo interesses econômicos e políticos diversos e, não raro, agentes públicos federais em agressões contra os direitos dos quilombolas.
O Quilombo Rio dos Macacos é constituído por 67 famílias descendentes de escravos que se fixaram, há mais de 100 anos, em Simões Filho (BA), na região metropolitana de Salvador. Elas estão ameaçadas de remoção por causa do interesse da Marinha em ampliar uma base (leia mais). Os quilombolas já foram agredidos e são constrangidos com revistas para poder chegar às suas casas (veja o vídeo). O Ministério Público apura as denúncias de violências.
Em Alcântara (MA), parte das 3.350 famílias quilombolas, cuja ocupação tradicional remonta ao século XVIII, corre risco de remoção por causa da ampliação da base de lançamento de foguetes da Aeronáutica. Parte da comunidade já havia sido despejada, no início dos anos 1980, em decorrência da implantação da base (saiba mais).
Em Belo Horizonte (MG), 35 famílias formam o Quilombo de Mangueiras, descendentes de escravos que se fixaram, na segunda metade do século XIX, em local acidentado situado, hoje, a 6,5 quilômetros do Centro Administrativo de Minas Gerais. Ocupação desordenada, especulação imobiliária e empresas envolvidas nas obras da Copa do Mundo ameaçam a comunidade, cujas terras têm hoje apenas 20 hectares (1/12 do território original) e estão em estágio avançado de regularização (leia o relatório de identificação).
O Quilombo da Pedra do Sal, na zona portuária do Rio de Janeiro (RJ), é constituído por 25 famílias descendentes de escravos trazidos da África e da Bahia há mais de 200 anos. Tombado em 1987, é um dos principais redutos da história do candomblé, do samba e do carnaval carioca. Apesar disso, a Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, ligada à Igreja Católica, insiste em expulsar os moradores por meio de ações judiciais. A região é alvo de um projeto de “revitalização” urbana (e da consequente especulação imobiliária) que integra as obras da Copa de 2014 e das Olimpíadas de 2016 (leia o relatório de identificação).
No Vale do Ribeira (SP/PR), dezenas comunidades estão ameaçadas por projetos de hidrelétricas, um deles da Companhia Brasileira de Alumínio, do Grupo Votorantim. A implantação das barragens podem provocar enchentes, o que ameaça até a igreja do Quilombo Ivaporunduva, com 300 anos (veja Especial do ISA sobre o assunto).
O Quilombo Rincão dos Martimianos, em Restinga Seca (RS), teve sua área reconhecida por decreto presidencial de 2009, mas o deputado Luiz Carlos Heinze (PP-RS), coordenador da bancada ruralista na Câmara e cujas campanhas eleitorais são financiadas por produtores de tabaco, quer aprovar um decreto legislativo sustando a desapropriação de pequenas propriedades rurais incidentes na área (saiba mais).
As mais de 100 pessoas da comunidade quilombola de Sumidouro, em Queimada Nova (PI), estão sendo ameaçadas de expulsão por empresas envolvidas em um projeto de produção de energia eólica, apesar de uma ocupação tradicional que começou na década de 1870.
Poderíamos seguir, cotejando centenas de outros exemplos, nessa sinistra viagem pelos conflitos territoriais que envolvem os quilombos no Brasil.
O governo deveria ter vergonha de abdicar de sua obrigação constitucional e histórica de tutelar os direitos das minorias. No caso dos quilombos, deveria exercer a sua autoridade para impedir que se instale pelo País uma verdadeira temporada de caça aos que simbolizam um dos elementos essenciais da nossa identidade nacional.
*Márcio Santilli é Coordenador de Política e Direito Socioambiental do Instituto Socioambiental (ISA). Formado em Filosofia, foi deputado federal pelo PMDB-SP (1983-1986) e presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), entre 1995 e 1996.