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Sonia Guajajara, coordenação-executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib);
Luís Eloy Terena, coordenador jurídico da Apib
Texto publicado originalmente no site do El País, em 25/8/2021 (atualizado em 26/8/2021, às 9:18)
Nesta quinta (26), o Supremo Tribunal Federal (STF) pode decidir o futuro das demarcações das Terras Indígenas (TIs), no mais importante julgamento da história do Brasil sobre o assunto.
A corte vai apreciar o “marco temporal”, interpretação defendida por alguns políticos ruralistas que restringe os direitos indígenas. De acordo com ela, os povos indígenas só teriam direito à terra se estivessem sobre sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Alternativamente, precisariam estar em disputa judicial ou conflito comprovado pela área na mesma data. A tese é perversa porque desconsidera expulsões e outras violências sofridas por essas populações. Além disso, ignora o fato de que eram tuteladas pelo Estado e não podiam entrar na Justiça de forma independente até 1988.
Os defensores do “marco temporal” dizem que há “muita terra para pouco índio”, que as demarcações comprometem a produção agropecuária e que, para atender a demanda por territórios, no limite, teríamos de devolver até Copacabana aos povos originários, porque todo o país um dia foi deles. Nada disso é verdade.
Hoje, 13,8% do território brasileiro é ocupado por TIs, considerando os procedimentos demarcatórios já abertos e dados publicados no Diário Oficial da União (DOU). Parece muito, mas a média mundial é maior: 15%, segundo estudo publicado por 20 pesquisadores de várias nacionalidades, na revista Nature Sustainability, em 2018.
As áreas privadas somam três vezes mais ou 41% do Brasil, segundo o IBGE. Cerca 22% do território nacional é ocupado com pasto - mas metade disso tem algum grau de degradação - e 8% com agricultura, conforme o projeto MapBiomas. Ou seja, parte das terras pode ser priorizada para recuperação, reduzindo ainda mais a demanda por novas ocupações.
Quem ataca os direitos indígenas também omite que somos campeões de concentração fundiária. Cerca de 1/5 do país é abarcado por 51,2 mil propriedades ou 1% do total de estabelecimentos rurais, ainda de acordo com o IBGE. Na verdade, o número de superlatifundiários é menor, porque muitas áreas estão em nome de parentes ou prepostos.
Disparidades e contradições não param aí. Mais de 98% da extensão das TIs fica na Amazônia Legal, muitas vezes em locais remotos e sem aptidão para a agropecuária extensiva. E apenas 0,6% do resto do Brasil é ocupado por indígenas. A principal demanda por demarcações está fora da região amazônica.
Enquanto cerca de 62% dos 517,3 mil moradores de TIs estavam na Amazônia em 2010 (último dado disponível do IBGE), o restante tem de se espremer em áreas minúsculas fora de lá. Por exemplo, há 225 mil hectares em reconhecimento para os Guarani em Mato Grosso do Sul. A densidade populacional dessas áreas é de 27 habitantes/km2, quatro vezes maior que a do estado (6 habitantes/km2).
Onde há mais conflitos com TIs, o percentual do território ocupado por elas também é ínfimo, ainda considerando procedimentos demarcatórios já iniciados. No Rio Grande do Sul, é de 0,4%, enquanto as propriedades rurais ocupam 77%; e assim por diante: BA (0,5% e 49%, respectivamente); PR (0,6% e 74%); SC (0,8% e 67%); MS (2,4% e 85%). A situação não é diferente em GO (0,1% e 77%), MG (0,2% e 65%) e SP (0,3% e 66%). Portanto entre os nove principais estados do agronegócio, em sete as TIs não passam de 1% do território (em MS, o índice é maior, mas ainda baixíssimo).
Em Mato Grosso, maior produtor agropecuário nacional, o percentual de território indígena atinge 16%, mas a demanda por demarcações é igualmente pequena. Por outro lado, como no resto do Brasil, os agricultores vêm ampliando a produtividade, ano após ano, independente dos conflitos fundiários.
Não é necessário ocupar ou desmatar mais, como repetem líderes como Blairo Maggi e Kátia Abreu. Mesmo se não fosse o caso, ainda restariam, pelo menos, 510 mil km2 de terras não destinadas no país - duas vezes o território do estado de São Paulo. Não há “muita terra para pouco índío” no Brasil! E ainda temos muito espaço para produzir, conservar e garantir justiça!
A imensa maioria dos mais de 5 milhões de produtores rurais brasileiros nunca viu um indígena, não está em conflito fundiário nem interessada em mais desmatamento ou em ocupar mais terra. É possível seguirmos como potência na produção de alimentos e atender a demanda por demarcações, respeitando os direitos indígenas previstos na Constituição.