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A instalação do CGen consolida o novo marco legal de acesso e com ele uma nova forma de encarar os recursos genéticos e o conhecimento tradicional, um modo utilitarista sem relação com a ideia de repartir benefícios derivados do uso da biodiversidade de forma justa e equitativa. Leia o artigo da especialista em biodiversidade Nurit Bensusan
No último dia 28 de julho, o novo Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CgGn) se reuniu pela primeira vez. Sua nova composição é, em si, uma lição sobre o novo marco legal de acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional. O CGen, Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, é uma criação da Medida Provisória que disciplinava esse tema até a entrada em vigor da Lei n º 13.123/2015, em novembro do ano passado e é o responsável pela coordenação de toda a polícia brasileira de acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional.
O atual Conselho, ao contrário de seu predecessor, tem representações não governamentais. Essas representações visam, em tese, contemplar os setores da sociedade interessados no tema e, mais, fazê-lo de uma forma equitativa. Porém, mais uma vez, como quase tudo nesse novo marco legal, a participação e a equidade são uma farsa.
Curiosamente, até mesmo uma simples afirmação sobre o número de membros do CGen é impossível. O artigo 7, do Decreto nº 8.772/2016, que dispõe sobre o Conselho diz que esse é composto de 21 membros: nove da sociedade civil e 12 do governo federal. Lista, porém, apenas 11 membros do governo…
Mais interessante, porém, é analisar a participação da sociedade civil. Dos nove membros, três são representantes de usuários empresariais, três são representantes da academia e três são representantes dos detentores de conhecimento tradicional. Antes de qualquer outro exame, vale a pena lembrar que a Lei nº 13.123/2015 amarra a participação desses três “setores”, de maneira que eles sempre devem ter o mesmo número de representantes no Conselho. Se essa era uma tentativa de paridade, ela evidentemente falhou. De acordo com a lei, nesse sistema, há usuários e provedores. Os usuários são aqueles que querem utilizar componentes do patrimônio genético ou conhecimento tradicional para fazer pesquisa ou desenvolver produtos.
O novo marco, as empresas e os pesquisadores são os usuários e os provedores são os detentores de conhecimento tradicional, como povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores familiares. Usando essa lógica, teremos sempre, no CGen, uma participação da sociedade enviesada: dois terços de usuários e um terço de provedores. Como é fácil imaginar que os interesses dessas partes, em geral, não coincidem, fica claro o desequilíbrio.
Uma análise puramente aritmética se esgotaria aqui e já teria deixado óbvio o desbalanço, mas como a vida é muito mais do que matemática, podemos agregar alguns importantes argumentos que acentuam a disparidade. Ninguém pode se iludir a ponto de achar que a participação dos usuários no CGen seria equivalente à dos provedores, mesmo que os números fossem iguais. Os representantes do setor empresarial são a Confederação Nacional da Indústria (CNI) e a Confederação Nacional da Agricultura (CNA). Possuem centenas de funcionários, muitos advogados, representam indústrias e coletivos de empresas ricas e poderosas.
Os representantes do setor acadêmico são a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a Academia Brasileira de Ciências (ABC) e a Associação Brasileira de Antropologia (ABA). São coletivos que reúnem a nata da ciência brasileira, pesquisadores e professores com amplos conhecimentos formais e forte poder de argumentação. Os detentores de conhecimentos tradicionais são representados por membros do Conselho Nacional de Política Indígena (CNPI), do Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (Condraf). Apesar de numericamente, representarem até mesmo mais gente do que os outros “setores”, o poder de fogo dos detentores é muito menor. Manejam com mais dificuldade as estruturas formais do poder e do conhecimento, não possuem recursos em abundância para contratar advogados e assessores e ainda tem que “matar um leão por dia”, pois o grau de ameaça aos seus direitos é alto e cresce a cada minuto.
Ainda assim, esse Conselho se quer mais democrático que o anterior. A participação da sociedade é festejada. Pior até que a ausência total da sociedade, talvez seja essa participação farsesca. E, por fim, vale lembrar a monumental ausência do maior interessado na manutenção do seu patrimônio: o povo brasileiro, que é, afinal, o dono da biodiversidade.
A instalação do CGen consolida o novo marco legal de acesso e com ele uma nova forma de encarar os recursos genéticos e o conhecimento tradicional, um modo essencialmente utilitarista que não guarda nenhuma relação com a ideia de repartir benefícios derivados do uso da biodiversidade de forma justa e equitativa. Um modo que tampouco ecoa a importância que a Convenção da Biodiversidade deu aos conhecimentos, saberes e inovações dos povos indígenas e das comunidades locais. Os mais revolucionários avanços da Convenção nada significam mais. Parece que voltamos no tempo, só que agora temos menos biodiversidade, mais ameaças e menos ilusões.
Os recursos genéticos da biodiversidade são encontrados em animais, vegetais ou micro-organismos, por exemplo, em óleos, resinas e tecidos, encontrados em florestas e outros ambientes naturais. Já os recursos genéticos da agrobiodiversidade estão contidos em espécies agrícolas e pastoris. Comunidades de indígenas, quilombolas, ribeirinhos e agricultores familiares, entre outros, desenvolvem e conservam, por décadas e até séculos, informações e práticas sobre o uso desses recursos. Esses são os chamados conhecimentos tradicionais. Na nova legislação, aqueles grupos sociais são designados de “detentores” desses conhecimentos.
Tanto o patrimônio genético quanto os conhecimentos tradicionais servem de base para pesquisas e produtos da indústria de remédios, sementes, gêneros alimentícios, cosméticos e produtos de higiene, entre outros. Por isso, podem valer milhões, bilhões em investimentos. Na nova legislação, pesquisadores e desenvolvedores desses produtos são chamados de “usuários” dos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais.
O Brasil é a nação com maior biodiversidade do mundo e milhares de comunidades indígenas e tradicionais, daí ser alvo histórico de ações ilegais de biopirataria, crime que a nova lei deveria coibir e punir.
A Convenção da Diversidade Biológica (CDB), tratado internacional que regula o tema dos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais, prevê que quem usa e explora economicamente os recursos genéticos e conhecimentos tradicionais deve remunerar, de forma “justa e equitativa”, os detentores desses recursos e conhecimentos, reconhecendo-os como instrumento valioso de produção de saber.
“Consentimento livre, prévio e informado” é a consulta feita a quem detém os recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade – as comunidades indígenas e tradicionais – sobre seu uso e exploração. Todo uso que se pretende fazer desses recursos e conhecimentos deve ser precedido de um processo de discussão com a comunidade que os detém, de modo que ela seja informada, conforme sua língua e costumes, do que se pretende fazer, dos produtos e vantagens a serem obtidos, garantindo a ela tempo suficiente para entender essas informações e ser capaz de decidir e autorizar, ou não, de forma autônoma, o uso pretendido. Se a consulta implicar uma autorização de uso e, por sua vez, ela significar o desenvolvimento de um produto ou processo com uso econômico, pode também gerar um contrato de repartição de benefícios entre as partes.