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CPF e CPI: a diferença é uma letra ou um mundo?

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Nurit Bensusan

Em artigo, Nurit Bensusan critica limitações de cadastro de acesso a recursos genéticos e conhecimentos tradicionais

Há mais de dois anos, o Brasil conta com novos marcos legais sobre o acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional: a Lei 13.123/2015 e o Decreto 8.772/2016. Sua construção confirmou a disparidade entre os usuários e os detentores desses recursos (saiba mas no box no final do artigo). Enquanto os primeiros, as empresas, reuniram-se centenas de vezes com o governo, aqueles que detêm o conhecimento tradicional e que são, em grande medida, responsáveis pela integridade do que resta do nosso patrimônio genético – agricultores familiares, comunidades indígenas e tradicionais – foram alijados do debate.

A emergência dos já-não-tão-novos marcos legais serve como medida da total incompreensão que os usuários e responsáveis pela regulação do acesso e uso do patrimônio genético e do conhecimento tradicional têm das formas de organização social, regimes de conhecimento e cultura de povos indígenas, povos e comunidades tradicionais e agricultores familiares.

No dia 6/11, 902 dias após a edição da Lei 13.123/2015 e 544 dias depois da publicação do Decreto 8.772/2016, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) colocou no ar o SisGen, sistema de cadastramento do patrimônio genético e do conhecimento tradicional acessado. Claro que o SisGen ainda vai passar por muitas mudanças e adaptações, mas já é possível perceber a dificuldade que será cadastrar e rastrear o conhecimento tradicional.

A questão do acesso ao conhecimento tradicional é intrinsicamente complexa. Não é apenas que ele está, em geral, amalgamado ao patrimônio genético, mas está também vinculado a vários outros elementos culturais, que influenciam sua transmissão e sua utilização. Uma parte desses elementos se relaciona com a organização social das comunidades. São essas estruturas sociais que são mobilizadas nos processos de consentimento prévio informado (CPI) e de acesso ao conhecimento tradicional.

Ou seja, como construir um processo de consentimento prévio informado legítimo é uma questão que se coloca sempre. Paralelamente, há a questão do compartilhamento do conhecimento. Muito do conhecimento que povos indígenas, comunidades tradicionais e pequenos agricultores possuem é comum. São centenas de anos de trocas e convívio. Quem, então, tem legitimidade para concordar com o uso do conhecimento?

O marco legal vigente fingiu que resolveu essa questão, estipulando que basta um detentor do conhecimento anuir que o consentimento está válido. Os outros, co-detentores, seriam beneficiados por meio do Fundo Nacional de Repartição de Benefícios. Evidentemente isso não funciona, pois esses co-detentores não têm a oportunidade de negar o acesso. Isso quer dizer que o processo de consentimento prévio é uma farsa: ele não dá aos detentores, de fato, controle sobre o acesso aos seus conhecimentos. Assim, as formas de transmissão são atropeladas e o conhecimento que devia ser repassado – ou não – para alguns chega em qualquer um, perdendo várias de suas dimensões, espirituais, simbólicas, estratégicas, para se converter apenas em informação útil para o desenvolvimento de um produto comercial.

O lançamento do SisGen reforça essa perspectiva. Há campos a ser preenchidos por quem acessa conhecimento tradicional. Entre eles, CNPJ ou CPF de quem consentiu, ou seja, daquele responsável pelo consentimento prévio informado. As perguntas afloram sem resposta: não é um coletivo que deveria dar o consentimento prévio informado? Se é um coletivo, ele deve estar organizado de maneira a ter um CNPJ? E se não estiver? Se basta um CPF, como garantir que o processo foi minimamente legítimo? Ou a legitimidade não é uma questão e o CPI é mesmo apenas uma formalidade?

O que são os recursos genéticos e conhecimentos tradicionais?

Os recursos genéticos da biodiversidade são encontrados em animais, vegetais ou micro-organismos, por exemplo, em óleos, resinas e tecidos existentes em florestas e outros ambientes naturais. Já os recursos genéticos da agrobiodiversidade estão contidos em espécies agrícolas e pastoris.

Comunidades de indígenas, quilombolas, ribeirinhos e agricultores familiares, entre outros, desenvolvem e conservam, por décadas e até séculos, informações e práticas sobre o uso desses recursos. São os chamados conhecimentos tradicionais. Na nova legislação, aqueles grupos sociais são designados de “detentores” desses conhecimentos.

Tanto o patrimônio genético quanto os conhecimentos tradicionais servem de base para pesquisas e produtos da indústria de remédios, sementes, gêneros alimentícios, cosméticos e produtos de higiene, entre outros. Por isso, podem valer milhões ou bilhões em investimentos. Na nova legislação, pesquisadores e desenvolvedores desses produtos são chamados de “usuários” dos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais.

O Brasil é a nação com maior biodiversidade do mundo e milhares de comunidades indígenas e tradicionais, daí ser alvo histórico de ações ilegais de biopirataria, crime que a nova lei deveria coibir e punir.

O que é a “repartição de benefícios” prevista na nova lei?

A Convenção da Diversidade Biológica (CDB), tratado internacional que regula o tema dos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais, prevê que quem usa e explora economicamente os recursos genéticos e conhecimentos tradicionais deve remunerar, de forma “justa e equitativa”, os detentores desses recursos e conhecimentos, reconhecendo-os como instrumento valioso de produção de saber.

O que é o “consentimento livre, prévio e informado”?

“Consentimento livre, prévio e informado” é a consulta feita a quem detém os recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade – as comunidades indígenas e tradicionais – sobre seu uso e exploração. Todo uso que se pretende fazer desses recursos e conhecimentos deve ser precedido de um processo de discussão com a comunidade que os detém, de modo que ela seja informada, conforme sua língua e costumes, do que se pretende fazer, dos produtos e vantagens a serem obtidos, garantindo a ela tempo suficiente para entender essas informações e ser capaz de decidir e autorizar, ou não, de forma autônoma, o uso pretendido. Se a consulta implicar uma autorização de uso e, por sua vez, ela significar o desenvolvimento de um produto ou processo com uso econômico, pode também gerar um contrato de repartição de benefícios entre as partes.

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