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Muitos foram os retrocessos que clivaram o Brasil no ano de 2017, mas nada foi tão aberrante e atentador a um mínimo padrão civilizatório quanto a tolerância a regimes de trabalho similares à escravidão
É bom lembrar que em 2018 a Lei Áurea completa 130 anos e que a superação da escravidão já foi tardia naquele final do século XIX. Não foi total novidade a ressurreição escravagista, pois a bancada ruralista no Congresso Nacional já havia explicitado a intenção de afrouxar as normas adotadas pelo Ministério do Trabalho (MT) para fiscalizar a ocorrência de formas degradantes de trabalho. Enquanto pôde, a bancada ruralista resistiu à aprovação da Emenda Constitucional 81/2014 - que prevê a desapropriação de imóveis onde haja comprovada exploração de trabalho escravo. Só cedeu quando a aplicação da Emenda ficou subordinada à regulamentação em lei ordinária, que vem sendo obstruída no Congresso a partir daí.
O incrível de 2017 foi que o Presidente Michel Temer, em busca de votos na Câmara dos Deputados para impedir a apuração de seus envolvimentos mais recentes em corrupção, concordou com a exigência ruralista de alterar a portaria do MT para dificultar – e eventualmente inviabilizar - a fiscalização e a punição dessas formas degradantes de trabalho. Em 16/10 foi editada uma nova portaria (1.129/2017) para submeter a divulgação da lista suja do trabalho escravo diretamente à autorização do ministro, além de exigir a comprovação de que trabalhadores estão impedidos de ir e vir para caracterizar o caráter degradante da relação.
Claro que a repercussão foi acachapante, ao ponto de os ruralistas exigirem que seus cúmplices e aliados na sinistra obra assumissem publicamente parte do desgaste. Foi assim que vimos Blairo Maggi, ministro da Agricultura e empresário supostamente moderno da cadeia da soja, declarar na TV, envergonhado, que, como havia produtores rurais interessados na medida, ela merecia o seu apoio. Um “moderno” com o rabo preso no século XIX.
Ainda mais incrível foi a nota oficial publicada em todos os meios de comunicação pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) defendendo a alteração da norma para favorecer empreiteiras da construção civil que arregimentam e mantém trabalhadores em condições degradantes, evidenciadas por frequentes sublevações ocorridas em canteiros de obras públicas pelo país afora. Os porta-vozes corporativos da indústria se equipararam, em matéria de atraso, aos representantes políticos do patrimonialismo fundiário.
Também foi péssima a repercussão internacional da medida, provocando reação da própria Organização Internacional do Trabalho (OIT) que, até então, considerava como exemplar a postura do Brasil no combate ao trabalho escravo. O sinal de degenerescência institucional e civilizatória correu o mundo.
A Procuradora Geral da República, Raquel Dodge, requereu ao Supremo Tribunal Federal (STF) a suspensão dos efeitos da nova e decrépita portaria, no que foi atendida, liminarmente, pela ministra Rosa Weber. Antes que essa decisão fosse julgada pelo pleno, o MT editou em 29/12 uma portaria supernova (1.293/2017), aparentemente repondo as condições de fiscalização existentes antes da chantagem ruralista.
Para não deixar dúvida sobre a recaída escravagista desse segmento, a Câmara Brasileira da Indústria da Construção (Cbic) veio a público para dizer que o resgate das condições anteriores de fiscalização é “retrocesso”. Provavelmente porque pretendia “avançar” ainda mais na precarização, com impunidade, das relações de trabalho. É bom lembrar que foi esse setor o que mais superfaturou dinheiro público e corrompeu políticos nos últimos anos.
Nesse processo, organizações e personalidades de vários setores reafirmaram o seu compromisso com a repressão e a erradicação de formas degradantes de trabalho, mas não houve manifestações empresariais importantes nesse sentido. Sinal dos tempos...