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Em artigo, a pesquisadora Nurit Bensusan propõe ideias para encontrar o caminho da geração de inovação a partir do acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional
Recentemente, o Instituto Escolhas lançou um estudo intitulado “Destravando a agenda da Bioeconomia: soluções para impulsionar o uso sustentável dos recursos genéticos e conhecimento tradicional no Brasil”. Trata-se de um esforço considerável para destrinchar as questões que impedem que o uso do patrimônio genético brasileiro e dos conhecimentos dos povos indígenas e comunidades locais alavanque uma economia baseada na inovação. Diversos pontos elencados no estudo são muito relevantes e constituem, de fato, entraves. Falta de clareza das normas, problemas no cadastramento do acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional, falta de incentivo para o uso do conhecimento tradicional, procedimentos difíceis e/ou morosos são exemplos de obstáculos arrolados para que essa agenda funcione.
Uma questão fundamental emerge do estudo, porém: se tais entraves fossem resolvidos, o uso do patrimônio genético e do conhecimento tradicional seria impulsionado? Quero defender aqui que não, por motivos de duas naturezas — uma essencialmente pragmática e outra estrutural.
O primeiro conjunto de motivos está relacionado à importância de fomentar a geração de inovação a partir da biodiversidade, criando condições para tal nas universidades, institutos de pesquisa, aldeias, empresas e comunidades. Ou seja, trata-se de conceber novos tipos de arranjos de pesquisa e desenvolvimento que reúnam esses diversos coletivos, apostar e garantir financiamento para pesquisas também de longo prazo, envolver estudantes oriundos de comunidades e aldeias, entre muitas outras coisas. Essa agenda só pode deslanchar a partir de uma orquestração entre diversos setores da sociedade e do governo.
O outro conjunto de motivos, mais estrutural, está relacionado com a necessidade de superarmos a dicotomia usuário – provedor. Ou seja, uma mentalidade onde tudo é concebido como uma espécie de cabo de guerra, onde os usuários do patrimônio genético e dos conhecimentos tradicionais — sejam eles pesquisadores de universidade ou de empresas privadas — estão de um lado e os provedores, aqueles que detêm os conhecimentos e preservam o patrimônio genético — sejam eles ́povos indígenas, comunidades locais ou agricultores familiares — estão do outro.
Superficialmente é possível dizer que esses dois pólos são cada vez mais indistinguíveis, pois os detentores chegam às universidades e se transformam em cientistas e outros profissionais e, portanto, usuários. Além disso, há pesquisadores de universidades que colaboram com povos indígenas e comunidades locais, colocando em xeque sua posição de usuários de conhecimento tradicional e de patrimônio genético. Mas uma análise mais demorada dessa questão revela que a existência desses pólos é uma herança colonial e que deve ser superada para que possamos caminhar para modelos de geração de inovação a partir da biodiversidade brasileira.
A dicotomia usuário-provedor possui pressupostos inaceitáveis. O mais discriminador deles é que os detentores de conhecimento tradicional não são usuários, ou seja, não fazem nem pesquisa, nem desenvolvimento tecnológico a partir de seus saberes, para usar os termos da Lei 13.123/2015. Outro pressuposto a ser superado é que a inovação nasce da apropriação do conhecimento ou do patrimônio genético por parte do usuário e não do encontro entre dois corpos de saberes.
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Se retornarmos à lógica que circunda esse tema em sua gênese, na Convenção sobre Diversidade Biológica, veremos que a repartição de benefícios — um dos três pilares desse documento — deve ser entendida como uma das estratégias de conservação da biodiversidade. Para tanto, benefícios devem ser gerados a partir do uso e da conservação da biodiversidade, de forma que sua utilização racional e manutenção sejam estimuladas. Ou seja, benefícios de tal monta que as outras atividades que poderiam ser realizadas e que poderiam ameaçar a biodiversidade seriam automaticamente desencorajadas.
Aqui, vamos adicionar mais um elemento para compor um cenário que nos permita examinar o potencial dessa agenda no Brasil. Como há inúmeros exemplos, trarei apenas dois, ambos ligados à pandemia do novo coronavírus. O primeiro é a recente identificação de uma substância, a plitidepsina, presente nas ascídias do mar Mediterrâneo, como um medicamento eficiente para tratar o mieloma múltiplo, uma espécie de câncer do sangue. Ascídias são animais marinhos invertebrados e hermafroditas que vivem fixados em pedras ou cais. Ensaios clínicos mostram que essa substância é cerca de cem vezes mais potente do que outras drogas usadas até o momento no combate à Covid-19. O outro exemplo é da tapsigargina, uma substância usada como antiviral e com efeitos muito promissores contra a doença. A tapsigargina é derivada de uma planta do sul da Europa e norte da África, utilizada na medicina tradicional da região há centenas de anos.
É emblemático que nenhuma nova substância com grande potencial farmacológico tenha surgido da Amazônia ou do Cerrado brasileiro — não apenas agora, em tempos de Covid, mas historicamente. São biomas com enorme diversidade e com um cabedal de conhecimento de uso dos elementos dessa diversidade que guardam gigantescas possibilidades que poderiam alavancar a economia local e a pesquisa e a geração de inovação no país. Evidentemente, o conjunto de entraves apontados pelo estudo do Instituto Escolhas atrapalha, mas o fim deles não garante um cenário suficientemente adequado para impulsionar a agenda.
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Há questões intrínsecas ao acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional, que dificilmente vão ser resolvidas dentro do atual marco legal e da mentalidade que molda o tema. Tais questões, como por exemplo, o binômio consentimento prévio informado e conhecimento tradicional compartilhado, precisam ser tratadas com um novo olhar sob pena de continuarem a ser obstáculos insuperáveis nessa agenda.
Um primeiro passo para a superação dessa dicotomia usuário – provedor e para tentar abordar toda essa agenda sob uma nova perspectiva seria promover um programa piloto de pesquisa, com um novo arranjo, concebido e desenhado por um coletivo de pessoas que reúna povos indígenas, comunidades locais, pesquisadores, empresas privadas, agências de fomento, entre outros.
Há, ainda que sub financiadas, pesquisas de identificação de novas substâncias feitas no Brasil a partir da biodiversidade brasileira, muitas vezes sem aproveitar o conhecimento tradicional acerca da biodiversidade não apenas por temor de se envolver com a burocracia da lei, mas também por medo dos eventuais desdobramentos, como acusações futuras de apropriação indevida dos saberes desses povos e comunidades. Em um arranjo mais equilibrado, esses temores poderiam ser deixados de lado e outras soluções para os entraves históricos poderiam surgir. O que poderia ser esse projeto piloto é uma questão em aberto e cuja resposta só emergirá se as condições para seu desenho e implementação forem dadas.
A agenda da bioeconomia muito se beneficiaria se tornasse possível tal tipo de projeto piloto, com financiamento de médio e longo prazo, estratégias de fomento para estudantes e pesquisadores e envolvimento da juventude indígenas e das comunidades locais. A promoção da equidade das relações dentro dos arranjos de pesquisa, de desenvolvimento tecnológico e de geração de inovação deve ser um pré-requisito para que essa nova economia reinvente o futuro.