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Em 28 de outubro, dias antes do segundo turno da eleição presidencial, a Rede de Comunicadores Indígenas do Rio Negro e convidados se reuniram na Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), em São Gabriel da Cachoeira (AM), para participarem da II Oficina de Formação, que marcou também o primeiro aniversário da Rede.
O debate político marcado pelas fake news (notícias falsas), ameaças à Amazônia e aos direitos dos povos da floresta trouxe à segunda oficina de formação da Rede de Comunicadores Indígenas do Rio Negro a necessidade de aprofundar estratégias de resistência a esse cenário. Além da programação prevista, que incluía a elaboração de notícias de rádio e o múltiplo uso dos celulares para a produção de conteúdo de texto, foto, áudio e vídeo, o evento abriu espaço para o debate político e sua relação direta com as tecnologias da informação em uma eleição marcada pelo uso das redes sociais como arena central da disputa narrativa por votos.
Os comunicadores da rede produzem notícias em Português e nas quatro línguas indígenas cooficiais em São Gabriel da Cachoeira, Baniwa, Nheengatu, Tukano e Yanomami.
A comunicção é possível porque, em algumas das comunidades, existe acesso a internet por meio do satélite público Gesac instalado nas escolas ou pelotões de fronteira do Exército brasileiro, como é o caso da TI Yanomami, na comunidade de Maturacá, e Pari-Cachoeira, no Alto Tiquié. A partir desse sinal, os comunicadores conseguem, com seus celulares, enviar os áudios para a sede do município. Já os comunicadores que moram em áreas sem internet enviam os áudios por pendrive através de parentes que estão a caminho da cidade. No Rio Negro, o aplicativo ShareIT de compartilhamento rápido de conteúdo - até 200 vezes mais veloz do que o bluetooth - é muito usado para a troca de arquivos entre celulares sem a necessidade de internet. Assim, uma pessoa que vai à sede ou outro local com internet se abastece de conteúdo e compartilha com a comunidade por ShareIT sem precisar de conexão.
Cada comunicador teve também a oportunidade de refletir em grupo sobre a importância da comunicação em sua própria comunidade, traçando um plano de fortalecimento, mobilização e multiplicação a ser desenvolvido pela Rede. Os comunicadores já se organizam como correspondentes (nas diferentes calhas de rios), locutores, produtores e editores do boletim Wayuri, que é produzido e finalizado na sede do município. A Rede é formada por indígenas de nove etnias: Baré, Baniwa, Desana, Tariana, Tukano, Tuyuka, Wanano, Yanomami e agora também com um novo integrante do povo Pira-Tapuya.
As Fake News foram tema de muitos debates na oficina, já que os indígenas estão sofrendo ataques por parte de políticos e empresários interessados na privatização de suas terras. No noroeste amazônico, as notícias falsas são velhas conhecidas que circulam pela chamada "rádio cipó". São as fofocas que vão de boca em boca e agora de zap em zap, que também iludem, perturbam e causam enorme confusão na opinião pública local. Diante dessa avalanche de notícias falsas, é também papel do comunicador construir narrativas amparadas em fatos bem apurados e comprometidos com a verdade.
“Tem empresário e político que espalha a informação que a gente é pobre e que passa fome nas comunidades. Eles dizem isso para convencer as pessoas a irem pro garimpo. Dizem que a gente é pobre em cima de solo rico. Mas não é verdade. A gente não vê ninguém passando fome na terra indígena”, comentou o comunicador Ray Benjamim, do povo Baniwa, referindo-se a sua região de origem, o rio Içana (TI Alto Rio Negro), onde constantemente há invasão de empresários interessados na extração de ouro e tantalita.
O mesmo questionou o jovem comunicador Adilson Joanico, Baniwa, morador da TI Jurubaxi-Téa. “Ainda temos que combater essa grande mentira que dizem por aí que terra indígena demarcada é como um zoológico para nós indígenas. Isso é uma imensa mentira, pois é com a terra demarcada que podemos garantir nosso peixe, nossa água limpa e nossas atividades que geram renda”, disse Joanico, que integra o projeto inovador de pesca esportiva em Terra Indígena. Justamente por ser protegida e cuidada pelos índios, a região possui os maiores tucunarés da Amazônia, atraindo pescadores de todo o mundo interessados nessa prática esportiva (pesque e solte).
Combater o preconceito e o desconhecimento de grande parte da sociedade sobre a realidade indígena na Amazônia são grandes desafios da Rede de Comunicadores Indígenas do Rio Negro. Esses jovens têm a chance de serem os narradores de suas próprias histórias, revitalizando a forte tradição oral de suas culturas, através dos boletins de áudio produzidos com seus celulares na floresta, como comentou no Facebook o escritor Daniel Munduruku sobre a criação da Rede de Comunicadores Indígenas do Rio Negro. “Nossos parentes atualizando nossa ancestralidade através dos novos instrumentos de comunicação. Vida longa para esta iniciativa dos parentes do Alto Rio Negro”, postou Daniel em seu Facebook.
Nesse primeiro ano de atividade, os comunicadores produziram mensalmente o boletim informativo de áudio, Wayuri (soundcloud.com/wayuri-audio), que é distribuído via radiofonia, redes sociais e aplicativos de compartilhamento. Destacaram-se também por participar ativamente da campanha de combate à malária em São Gabriel da Cachoeira, que em 2018 foi o município com mais casos da doença no Brasil. Além de estarem em mobilizações importantes do movimento indígena, como o Acampamento Terra Livre (ATL), onde produziram diariamente o informativo Vozes do ATL.
Refletir sobre a política nacional e ao mesmo tempo aprender a fazer um boletim de áudio curto para ser compartilhado via Whatsapp. Essa foi a proposta da jornalista Letícia Leite, do Instituto Socioambiental (ISA) em Brasília, autora do boletim de áudio Copiô, Parente. Enviado semanalmente para cerca de 2 mil contatos via WhatsApp, o boletim traz notícias de Brasília que interessam aos índios e aos povos da floresta. Letícia esteve pela segunda vez em São Gabriel para participar da formação dos comunicadores indígenas do Rio Negro, que é um projeto coordenado pelo ISA e conta com o apoio da União Europeia.
Como exercício prático na oficina, a pauta foi construída por Letícia junto com os comunicadores rionegrinos, que falaram sobre as ameaças aos seus direitos e territórios. Eles citaram três principais ameaças que assustam os índios do Rio Negro: a regulamentação da mineração em terra indígena, a paralisação das demarcações e a criminalização do ativismo político e dos movimentos sociais. Sobre a mineração, por exemplo, eles recordaram dos abusos, violência e descaso com o meio ambiente cometidos pelos garimpeiros que atuaram na região antes das demarcações feitas nos anos 90.
“Fazer circular um boletim periódico feito por 17 indígenas de uma mesma bacia hidrográfica para todos os indígenas que vivem no Rio Negro é inovador. O trabalho duro de narrar verdades diante de tantas mentiras é nosso maior aliado na comunicação por direitos”, afirmou Letícia. Ouça aqui o Copiô, Parente especial produzido em São Gabriel.
As lideranças indígenas mais antigas do Rio Negro quando estão na presença dos jovens sempre procuram relembrar a enorme luta que foi conquistar a demarcação de suas terras. Para os que já nasceram com o direito ao território garantido, nem sempre essa vitória é destacada. Como dizem alguns conhecedores, “só quando falta água é que a gente dá falta”.
Há 20 anos, diante de uma assembleia lotada na Maloca da Foirn (Casa dos Saberes), em 15 de abril de 1998, o então ministro da Justiça, Renan Calheiros, entregou aos índios do Rio Negro os decretos de homologação de cinco terras indígenas contíguas na região. Esses documentos foram erguidos como um troféu pelos 23 povos indígenas da região e suas organizações representativas, que lutaram por 30 anos para conquistar a posse permanente de suas terras.
Em 2018, vinte anos depois da demarcação, os indígenas do Rio Negro estão finalizando os seus planos de gestão territorial e ambiental, conquista do movimento indígena obtida a partir da criação da Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial das Terras Indígenas (PNGATI). Junto com os PGTAs, projetos de geração de renda sustentável estão surgindo nas terras indígenas da região, como as atividades de turismo de base comunitária, produção e comercialização de artesanato e produtos da culinária local, muitos deles atraindo até mercados estrangeiros, como já é o caso da pimenta Baniwa e do cogumelo Yanomami.
Iniciativas inovadoras realizadas pelos índios na região mais preservada da Amazônia - que recebeu em 2018 o título de maior área úmida preservada do planeta (Sítio Ramsar Rio Negro) - precisam ser contadas e divulgadas. A Rede de Comunicadores Indígenas do Rio Negro vem, portanto, narrando essas histórias através dos boletins de áudio Wayuri e deseja que suas ações possam ser potencializadas. “A comunicação é estratégica nos dias de hoje. Queremos que a Rede de Comunicadores possa ser apoiada para desenvolver oficinas nas comunidades, dando mais visibilidade aos trabalhos em andamento nas terras indígenas do Rio Negro”, ressalta Marivelton Barroso, Baré, presidente da Foirn, na abertura da oficina.
Miguel Maia, do povo Tukano, que participou ativamente do movimento indígena na época das demarcações, é hoje funcionário da Funai em São Gabriel. Maia disse aos jovens estar muito feliz por ver uma rede de comunicadores indígenas constituída e ativa no Rio Negro. “Isso era um antigo sonho nosso”, disse emocionado. Maia recordou que já em 1998, o movimento indígena rionegrino começou a investir em comunicação.
“O boletim Wayuri impresso da Foirn era rodado em mimeógrafo e distribuído nas comunidades, informando sobretudo sobre a demarcação das terras”. Miguel lembrou também de quando ele próprio redigiu uma matéria sobre a delicada e difícil relação dos índios com os militares na região de fronteira. A reportagem gerou repercussão e debates, propiciando a elaboração do termo de convivência entre indígenas e militares na região, em vigor até os dias atuais. “A Funai deve apoiar a Rede de Comunicadores porque sabemos que é fundamental essa circulação de informações nas terras indígenas”, concluiu durante a mesa de abertura da oficina, no último dia 24 de outubro.
Parte das atividades realizadas com os comunicadores entre os dias 22 e 27 de outubro contou também com a parceria do Instituto de Pesquisas Socioeconômicas (Inesc). Por dois dias, as assessoras do Inesc, Alessandra Cardoso e Cleomar Manhas, conduziram uma oficina com os comunicadores indígenas, lideranças e estudantes convidados pelo Departamento de Jovens da Foirn sobre orçamento público como possibilidade de ação política para a juventude indígena do Rio Negro.
Os jovens realizaram refletiram sobre a construção dos PGTAs do Rio Negro e também elaboraram um mapa do poder, identificando as instituições presentes nos seus territórios e qual a influência de cada uma. Tiveram ainda a oportunidade de debater o orçamento público federal e o montante destinado à Funai, responsável pela política indigenista em todo o país e subordinada ao Ministério da Justiça.
Para a maioria dos jovens comunicadores e estudantes do Rio Negro, essa foi a primeira vez que conversaram sobre orçamento público. Muitos se sensibilizaram com o debate, trazendo ideias de como superar problemas locais que a juventude enfrenta, como falta de opção de cultura e lazer, assim como questões relacionadas ao abuso de álcool e o elevado índice de suicídio de jovens indígenas na região.
- Ray Benjamim, Baniwa, atualmente mora na sede do município de São Gabriel da Cachoeira, onde trabalha como coordenador de comunicação da Foirn. É um dos editores do boletim de áudio Wayuri;
- Claudia Ferraz, Wanano, moradora da sede de São Gabriel, é a animadora da Rede de Comunicadoras, atuando também como locutora, produtora e editora do boletim de áudio Wayuri;
- João Nilton, Yanomami, é correspondente na TI Yanomami, comunidade de Maturacá, na região do Pico da Neblina, ponto mais alto do Brasil;
- Estrelina, Yanomami, também é correspondente na comunidade de Maturacá e representa a Associação de Mulheres Yanomami, Kumirayoma;
- Plínio Guilherme, Baniwa, correspondente na comunidade de Tunuí Cachoeira, alto rio Içana, próximo a fronteira com a Colômbia, TI Alto Rio Negro;
- Laura Almeida, Tariana, correspondente na comunidade de Assunção do Içana, Baixo rio Içana, TI Alto Rio Negro;
- Adilson Joanico, Baniwa, correspondente em Acariquara, município de Santa Isabel do Rio Negro, TI Jurubaxi-Téa;
- Hélio de Jesus, Pira-Tapuya, é o mais novo correspondente da Rede, morador da ilha de Duraka, TI Médio Rio Negro;
- Maguinês Gentil, Tukano, correspondente no distrito de Pari-Cachoeira, Alto Rio Tiquié (Triângulo Tukano), TI Alto Rio Negro;
- Marco Antônio, Tukano, correspondente no distrito de Taracuá, Baixo Rio Uaupés, TI Alto Rio Negro;
- Marcivaldo Lopes, Tuyuka, comunicador para as regiões do Baixo Rio Uaupés e Baixo Rio Tiquié, TI Alto Rio Negro;
- Arlison Marinho, Wanano, correspondente no distrito de Iauaretê, Alto Rio Uaupés, fronteira com a Colômbia, TI Alto Rio Negro;
- Cleiciane Mourão, Baré, correspondente no distrito de Cucuí, fronteira com a Venezuela, TI Cue-Cue Marabitanas;
- Onildo Cipriano, Baré, correspondente na sede de Santa Isabel do Rio Negro;
- Jucilaura Tomás de Melo, Baré, correspondente em Cauboris, Barcelos;
- Edilson Ramos, conhecido como Ovinho, Tuyuka, correspondente e fotógrafo na comunidade de São Pedro, Alto Rio Tiquié, TI Alto Rio Negro;
- Lucas Matos, Tariano, integrante do departamento de Jovens da Foirn, morador da sede de São Gabriel, é locutor do boletim de áudio Wayuri;
- Janete Alves, Desana, integrante do departamento de Mulheres da Foirn, moradora da sede de São Gabriel e representante do movimento das mulheres indígenas na Rede;
- Moisés Luís da Silva, Baniwa, cineasta e correspondente da Rede na comunidade de Itacoatiara Mirim, na zona periurbana de São Gabriel;