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Espetáculo “Café com Queijo”, do Lume Teatro, de Campinas (SP), foi apresentado em São Gabriel da Cachoeira (AM) após 21 anos da viagem feita pelo Rio Negro que inspirou sua criação
Em 1997, três jovens atores partiram para uma viagem que mudaria suas vidas. Chegaram ao município mais indígena do Brasil, São Gabriel da Cachoeira, num avião Buffalo da FAB dispostos a conhecer pessoas e histórias. Num território seis vezes maior do que o Rio de Janeiro, percorreram o Rio Negro, subiram o Uaupés até Iauaretê, conhecida como a cidade do Índio, foram às terras indígenas do Balaio, Yanomami (Maturacá) e outras comunidades pelos caminhos navegáveis da Amazônia.
Do xibé ao caxiri, tudo surpreendia os jovens artistas que faziam contato pela primeira vez com o universo multicultural e linguístico dos 23 povos indígenas rionegrinos. Duas décadas depois, como atores pesquisadores do Lume Teatro da Unicamp (Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais), o trio retornou a São Gabriel da Cachoeira para apresentar o espetáculo “Café com Queijo”, fruto dessa viagem imersiva às águas pretas, que incluiu também os municípios de Barcelos, Santa Isabel do Rio Negro e Novo Airão.
“Antes do nosso retorno a São Gabriel, revisitamos nossos diários de campo e fizemos um mapa de afetos que pudesse nos guiar na nova visita. Talvez apego ao vivido, certa nostalgia pairando no ar ou um medo não nomeado de que a nova experiência fosse menos intensa que a primeira”, revela a atriz Ana Cristina Colla, que junto com os atores Jesser de Souza e Raquel Scotti Hirson, participou da primeira viagem. Nessa volta ao passado, Cris deparou-se com uma anotação realizada no dia 10 de maio de 1997, em Balaio, onde foram recebidos pelo cacique Casimiro Tukano e sua esposa Dona Guilhermina , do povo Desana.
“Dona Guilhermina pediu que retornássemos, que não fôssemos como aqueles que passam um dia e vão embora, deixando saudades. Cortou o coração pois não sabemos quando e nem se, algum dia, retornaremos a Balaio. Ficou forte a sensação de que nos tornamos, de alguma maneira, responsáveis por eles, de que eles mantêm expectativas com relação a nós e que são amigos que estamos deixando pelo caminho. Era véspera do Dia das Mães, cantamos a música da ‘mãezinha’, lágrimas. Pensei muito em minha mãe, distante, falecida há dois anos.”
Nesse clima de emoção pelo reencontro e pelos novos encontros por vir, o grupo agora formado por 11 pessoas e com mais um ator, Renato Ferracini, desembarcou na São Gabriel de 2018. Mais populosa, urbana, com barulho de motos e carros, porém ainda com o rio Negro e a floresta imponentes na paisagem do lugar. O Lume Teatro fez duas apresentações gratuitas (nos dias 8 e 9 de junho) no telecentro do Instituto Socioambiental (ISA), no Centro de São Gabriel. Ambas lotadas, o salão cercado por uma colcha de retalhos virou cenário acolhedor para histórias, cantorias e lembranças com a participação do público. Após o espetáculo, um café com queijo típico do Tocantins foi servido ao público, que na primeira noite também participou de um “Trueque”, um encontro festivo de troca cultural, na palhocinha do ISA, com música, poesia e bate-papo com o elenco.
“A cortina de retalhos se abriu e um a um foram entrando. Eu ali no meio, numa dança entre cadeiras, me assombrava. Pareciam velhos conhecidos. Uma pequenina, de vestido verde de festa, pele escura, outra de vermelho, babados na saia, pernas miúdas de fora e mais um e mais outra. E era como se a Maroquinha houvesse chegado e ao lado da Dona Maria tivesse se sentado. Eu conheço esse povo! Eu os conheço há vinte anos! Pensei, senti, desejei me silenciar, parar minha dança e de novo escutar. Não me parecia que a palavra deveria ser nossa essa noite. Eles estavam de volta. Nós estávamos de volta”, relatou Cris, que também fez a criação e concepção do espetáculo, junto com Raquel, Jessé e Renato.
Os personagens daquele tempo, muitos idosos, partiram. Mas, seus familiares e amigos estiveram presentes, como a família Machado, de Pari-Cachoeira. O filho (Benedito) e os netos (Evandro e Michelle) de Maria Fernandes Machado, tiveram a memória revivida pela lembrança de Dona Maria, interpretada pela atriz Rachel. Em cena uma Maria saudosa das festas na aldeia, das pinturas, ornamentos, danças e caxiris comunitários. Uma Maria solitária, queixosa pelo esvaziamento de Pari-Cachoeira e da chegada dos padres censores de sua cultura festiva , livre de dogmas e tabus. “O Lume nos trouxe ao presente a memória viva de Dona Maria Fernandes Machado, minha avó, uma matriarca que nos deixou um grande legado de conhecimento”, disse Evandro, que reencontrou os atores do Lume em São Gabriel.
“São Gabriel não é mais a mesma, cresceu e se multiplicou. Nós não somos mais os mesmos, crescemos e nos multiplicamos. E mesmo assim, como velhos conhecidos que dispensam palavras, nosso encontro aconteceu”, concluiu Cris. Além de São Gabriel da Cachoeira, o Lume se apresentou em Manaus, Maués, Tabatinga e Coari, no Amazonas. E agora em julho, o espetáculo será apresentado no Pará, em Óbidos e Oriximiná, no projeto Circulação Amazonas, com patrocínio Petrobras/Ministério da Cultura.
Com os altos e baixos da política cultural do Brasil, o Lume Teatro é um motivo de orgulho para quem faz e ama o teatro. Em março de 2018, o Lume – Núcleo Interdisciplinar de pesquisas teatrais da Unicamp – completou 33 anos de vida, com um grupo de sete atores-criadores e mais de duas décadas situado em sede fixa, no distrito de Barão Geraldo, em Campinas (SP). O grupo conquistou a mais importante premiação do teatro no Brasil em 2013, o Prêmio Shell, e tornou-se conhecido em 27 países, desenvolvendo parcerias com artistas e grupos brasileiros e do exterior. Atualmente, o Lume possui 12 espetáculos em cartaz e também difunde seu trabalho através de oficinas, intercâmbios, reflexões teóricas, assessorias e projetos itinerantes.