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Em mais uma crônica socioambiental, o sócio fundador do ISA Márcio Santilli conta um pouco do histórico encontro que deu origem à campanha ‘Y Ikatu Xingu, em 2004
Entre 1995 e 2005, o desmatamento na Amazônia brasileira manteve índices pornográficos. Os 225 mil km2 então desmatados no período representaram quase 20 bilhões de toneladas de CO2 lançados na atmosfera e levaram o Brasil às primeiras posições no ranking dos maiores emissores de gases do efeito estufa. O Mato Grosso foi o estado que mais desmatou no período, seguido de perto pelo Pará e por Rondônia.
O nordeste do Mato Grosso foi das regiões mais afetadas. A expansão da soja e de outras culturas intensivas nos cerrados mato-grossenses empurrou a pecuária extensiva rumo à floresta amazônica, num processo alimentado pela abertura e pavimentação de rodovias federais, como as BRs 158 e 163, que atravessam a Amazônia Oriental do sul para o norte, acompanhando, grosso modo, os divisores de águas entre as bacias hidrográficas do Araguaia-Xingu e do Xingu-Teles Pires.
A rápida expansão do desmatamento afetou particularmente a região das nascentes e formadores do Rio Xingu, configurando uma espécie de "abraço da morte" no entorno do Parque Indígena do Xingu (PIX), a mais conhecida e emblemática terra indígena do país, cujo reconhecimento oficial, em 1961, decorreu da ação dos irmãos Villas-Bôas.
A delimitação dessa área priorizou linhas secas e excluiu os principais formadores do Xingu, resultando numa extensão bem menor do que a inicialmente proposta. Embora o território do PIX tenha se mantido íntegro em boa medida, os povos indígenas xinguanos passaram a sofrer impactos crescentes, sobretudo por conta da erosão, do fogo, do lixo e dos agrotóxicos levados pela água, comprometendo o seu uso pelos índios e alimentando conflitos com os fazendeiros vizinhos.
Durante anos, os técnicos do ISA ouviram reclamações dos índios de que a qualidade da água estava piorando. Não seria difícil para o ISA denunciar o "abraço da morte". O Xingu é uma referência sobre os povos indígenas e a diversidade socioambiental do país para a grande maioria da população brasileira, que também não aprecia a destruição das florestas. A contribuição das emissões florestais para a crise climática já mobilizava atenções da opinião pública mundial. Porém, a simples denúncia da situação não seria suficiente para uma reversão dessa sinistra tendência em expansão.
Até então, a atuação do ISA na região estava focada especificamente no apoio aos povos indígenas do PIX. Mas a sua presença física no município de Canarana, a contratação de serviços e a movimentação comercial e financeira nos municípios da região permitiram à organização um contato direto e frequente com as narrativas locais sobre índios e desmatamento. A área é cortada pela linha que divide os biomas do cerrado e da floresta amazônica, aos quais a legislação florestal atribui obrigações diferentes quanto à extensão da cobertura florestal nas propriedades rurais. Num mesmo município, pode haver imóveis situados em biomas diferentes e, portanto, com exigências ambientais diversas.
A principal crítica dos grandes proprietários de terra à legislação florestal referia-se à figura da Reserva Legal (RL), que obriga a conservação da cobertura florestal em 80% da extensão das propriedades localizadas no bioma floresta amazônica, 35% quando localizadas no bioma cerrado dentro da Amazônia Legal e 20% nos demais biomas, inclusive nos cerrados não amazônicos. A retórica dominante entre os proprietários da região rejeitava a obrigatoriedade da RL, mas até em função disso, reconhecia a pertinência das Áreas de Preservação Permanente (APPs), notadamente as matas ciliares. De muitos proprietários, o ISA ouviu considerações de que, enquanto a RL impunha limitações excessivas, a proteção oferecida às APPs era modesta, e que até concordariam em manter (ou recuperar) matas ciliares em maior extensão, embora já houvesse, em 2005, um passivo de 300 mil hectares em matas ciliares na parte mato-grossense da Bacia do Xingu. A narrativa dos fazendeiros também incorporou a consciência de que a água é um ativo fundamental, inclusive para a produtividade agrícola. Muitos deles vinham constatando perdas e danos desse ativo nas suas propriedades em função de desmatamentos desnecessários realizados no passado.
Após um intenso debate interno, o ISA decidiu fazer um investimento institucional para viabilizar uma campanha com foco na proteção e recuperação de nascentes e matas ciliares na Bacia do Xingu. Decidiu, ainda, preferencialmente, articular essa campanha e lançá-la em conjunto com os atores sociais e institucionais da região das cabeceiras do Xingu, incluindo as prefeituras e representantes dos povos indígenas, dos assentados da reforma agrária e dos proprietários rurais e seus respectivos sindicatos patronais. Para tanto, saí da coordenação do Programa de Política e Direito do ISA para coordenar a articulação dessa iniciativa e, nos meses seguintes, a organização contratou Daniela de Paula e Rodrigo Junqueira, agrônomos atuantes no campo socioambiental, para compor uma equipe de coordenação. Essa decisão decorreu da avaliação de que esse trabalho teria que se desenvolver sobretudo fora do PIX e não deveria comprometer a continuidade dos projetos desenvolvidos em parceria com a Associação Terra Indígena do Xingu (Atix) dentro daquela área. Além disso, o objetivo de recuperar nascentes e matas ciliares em assentamentos e propriedades rurais requeria pessoas com formação técnica distinta da dos técnicos do ISA que já atuavam com os índios.
Mas o ISA já vinha realizando há alguns anos, no âmbito do Programa Xingu, o monitoramento do avanço do desmatamento e já dispunha de um mapeamento preliminar dos principais atores sociais e institucionais da região, realizado pela bióloga Rosely Sanches. O instrumento fundamental para a articulação dessa campanha foi um mapa que sintetizava o resultado acumulado desse monitoramento. A imagem do avanço do desmatamento deixava evidente a gravidade e a urgência da situação, mostrando a vulnerabilidade do PIX, para onde todas as águas correm.
A proposta não era de simples denúncia ou discussão sobre o desmatamento na região, mas de juntar as forças dos seus atores sociais e institucionais para promover a recuperação de matas ciliares nas propriedades rurais, nos lotes dos assentamentos e em terras públicas, visando reverter a tendência de perda de qualidade e de disponibilidade de água. Além de reunir os sujeitos de direito sobre essas áreas, a articulação da campanha buscou apoio das escolas municipais, da Escola Família Agrícola de Querência e da Universidade Estadual do Mato Grosso (Unemat) em Nova Xavantina e Sinop. Foram mobilizadas instituições com relevante presença na região como a Eubiose, os Centros de Tradições Gaúchas (CTGs) e a Associação dos Fazendeiros do Araguaia-Xingu (Asfax). Prefeituras e organizações de mais de 20 municípios foram visitadas, independentemente da filiação partidária ou da orientação ideológica. A disposição em proteger e recuperar as matas ciliares foi a única condição para se aderir à campanha. A secretária de Agricultura e Meio Ambiente de Canarana, Eliane de Oliveira Felten, deu um suporte fundamental para o início dessa articulação regional.
Em 2004, o ISA já era bem conhecido na região, sobretudo nos municípios do leste do Xingu, e tinha, já há quase 10 anos, a sede do Programa Xingu instalada em Canarana. Como não poderia deixar de ser, a instituição era regionalmente conhecida por sua afinidade com os povos indígenas, até porque todos os seus projetos eram, então, executados no PIX. Não deixou de causar surpresa a alguns dos nossos interlocutores a iniciativa do ISA em procurá-los, o que também ensejou situações curiosas.
Lembro-me da primeira visita que fizemos à prefeitura de Água Boa, quando fomos recebidos pelo secretário municipal de Agricultura e que já havia sido prefeito da cidade. Ele ouviu em silêncio e atentamente a apresentação que eu fiz do problema e da proposta de campanha e, quando eu terminei, ainda esticou um pouquinho o silêncio de forma meio cerimonial e disse: "Eu já tive vontade de te matar!" Diante do meu susto, ele emendou: "Fique calmo, eu não quero mais te matar. Se ainda quisesse, não estaria te dizendo isso". "Mas, por quê?", perguntei. "Porque você e os seus advogados impediram a implantação da hidrovia Araguaia-Tocantins! Eu era o prefeito, construí um porto às margens do Rio das Mortes, mas uma liminar da Justiça Federal impediu a inauguração". Com efeito, o Núcleo de Direitos Indígenas (NDI) – uma das organizações que formaram o ISA – havia representado em juízo as comunidades Xavante de Areões e de Pimentel Barbosa, cujas terras seriam afetadas pela hidrovia sem que houvessem sido consultados a respeito.
Apesar desse karma, nenhum dos nossos interlocutores negou-se a conversar sobre o avanço do desmatamento e as suas consequências, assim como ninguém recusou a ideia de uma campanha com foco nas nascentes e matas ciliares. Inclusive os representantes dos grandes agricultores apreciaram a iniciativa do ISA em procurá-los e convidá-los para uma iniciativa conjunta, em vez de simplesmente denunciá-los. Tomei a iniciativa, inclusive, de bater na porta da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), em Brasília e, por indicação dela, na da Federação da Agricultura e Pecuária do Mato Grosso (Famato), em Cuiabá, assim como outras organizações de âmbito estadual e federal, sempre com o mesmo problema e a mesma proposta, onde fomos igualmente bem recebidos.
Da mesma forma, foram contatadas a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) e a Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetragri). O presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Lucas do Rio Verde, Nilfo Wandscheer, liderou a mobilização das associações dos assentamentos e da agricultura familiar.
Propusemos, então, a todas as partes, a realização de um grande encontro regional para pactuar os termos e condições dessa campanha. A proposta gerou um desconforto inicial entre representantes dos fazendeiros, preocupados com a possibilidade de sofrerem algum constrangimento numa reunião desse tipo. Os índios também estranharam a ideia de se reunirem com os produtores rurais, o que nunca haviam feito antes, mas aceitaram o convite, ainda que tivessem muitas dúvidas sobre a possibilidade de algum resultado palpável.
O encontro se daria em Canarana. A prefeitura cedeu o centro comunitário para sediar o evento e cerca de 340 pessoas participaram dele, representando os principais segmentos sociais e instituições regionais. Os grandes proprietários não compareceram em massa, mas prestigiaram o encontro. Figuras importantes do agronegócio pactuaram os seus resultados, como Homero Pereira, então secretário de Desenvolvimento Rural de Mato Grosso e presidente da Famato, William Khoury, diretor da CNA, e João Shimada, diretor da Amaggi (maior empresa da cadeia da soja, que pertence à família do ex-governador e atual ministro da Agricultura, Blairo Maggi), além de Marcos da Rosa, então presidente do sindicato rural de Canarana e atual presidente da Associação dos Produtores de Soja do Mato Grosso (Aprosoja).
O encontro durou três dias e a sua metodologia priorizou espaços de autonomia para que cada segmento – índios, assentados da reforma agrária, proprietários rurais e gestores municipais – organizasse a discussão sobre a sua inserção no tema das matas ciliares e no esforço de campanha. Houve uma dinâmica de compartilhamento dos resultados das discussões em cada grupo com os demais, a título de informação e de coleta de sugestões, sem que um grupo tivesse que subordinar aos outros as suas conclusões. Os relatórios dessas conclusões foram acolhidos como anexos do documento final do encontro que, em uma página, reafirmou o objetivo geral de proteger e recuperar nascentes e matas ciliares, incorporando quatro propostas específicas, que resumiam necessidades e expectativas de cada segmento: respeito às terras indígenas e aos seus limites, geração de renda para os assentados da reforma agrária, redução dos custos de restauração florestal nas propriedades rurais e provimento de serviços de saneamento básico nos municípios da região. A "Carta de Canarana" foi aprovada por aclamação e a única questão que foi submetida a votação foi o nome da campanha, tendo sido vencedora a proposta dos índios Kamaiurá: “Y Ikatu Xingu” – que significa "Água Boa no Xingu".
Nos anos seguintes, a campanha desenvolveu-se em várias frentes, agregando parcerias e atraindo recursos para a região. O Ministério das Cidades realizou um diagnóstico da situação de saneamento básico em todos os municípios mato-grossense com territórios na Bacia do Xingu. A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) conseguiu recursos para implementar um projeto de pesquisa na região, em apoio a campanha. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) aprovou recursos para restauração florestal nos assentamentos. O Fundo Nacional do Meio Ambiente aprovou projetos de prefeituras e de outras instituições para o desenvolvimento de projetos de recuperação de matas ciliares.
A Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), Agência Nacional de Águas (ANA), o Fórum das Organizações de Meio Ambiente e Desenvolvimento do Mato Grosso (FORMAD), o Instituto Centro e Vida (ICV), a Aliança da Terra e o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), entre várias outras organizações governamentais e não governamentais atuantes na região, também participaram ativamente da mobilização. A música da campanha foi composta e gravada por uma dupla sertaneja de São José do Xingu.
Por sua vez, o ISA desenvolveu técnicas de restauração florestal apropriadas a cada tipo específico de propriedade ou de produtor rural, fundamentadas no uso intensivo de sementes de espécies florestais nativas. Nos lotes de assentamentos, foi disseminado o uso da “muvuca” de sementes para o plantio de agroflorestas. Plantadeiras de soja e de capim foram reguladas para o plantio mecanizado de matas ciliares nas fazendas. Essas técnicas foram disseminadas por meio de publicações e de “dias de campo”. Somente com a assistência direta do ISA, existem experiências de restauração florestal em curso ou já realizadas em 160 propriedades rurais, com diversos tamanhos e culturas. Como resultado desse esforço inicial, até 2017 foram restaurados 5 mil hectares dentro e fora da Bacia do Xingu.
A criação da Rede de Sementes do Xingu, em 2007, foi o principal desdobramento e legado da Campanha ‘Y Ikatu Xingu. Reúne 450 coletores em 13 comunidades indígenas e 14 assentamentos da região, que já produziram 175 toneladas de 200 espécies florestais nativas, gerando uma renda de R$ 2,5 milhões. As sementes são compradas por produtores rurais e empresas interessados em restaurar matas ciliares. Eles podem fazer isso por meio das técnicas de uso intensivo de sementes a um terço do custo médio de restauração florestal pelo método tradicional de plantio de mudas. Os agricultores reconhecem a eficiência e a qualidade dessas técnicas, que dependem da disponibilidade crescente de sementes oferecidas pela Rede. Um belo exemplo de cooperação concreta entre diferentes segmentos sociais, com ganhos para todos.
O legado da campanha foi incorporado institucionalmente pelo Programa Xingu do ISA, sob a coordenação de André Villas-Bôas (atual secretário executivo da organização), com equipe própria e sem prejuízo às atividades no PIX. Uma terceira equipe foi formada para atuar na região de Altamira (PA), no apoio às comunidades das reservas extrativistas da região conhecida como Terra do Meio.
Os produtores locais continuam valorizando a campanha, o trabalho do ISA e a Rede de Sementes, seja pela eficiência e pelo baixo custo da restauração florestal, seja pelos canais diretos de interlocução que se abriram nesse processo entre todos os atores regionais. Por outro lado, os supostos representantes do agronegócio em âmbito estadual e nacional – CNA, Famato, bancada ruralista – pouco aproveitaram da experiência. Não se opuseram à campanha, mas deletaram a sua memória ou, pelo menos, a sua participação. Os que, em seu nome, testemunharam aquele processo, com o passar dos anos faleceram ou foram substituídos. Da parte desses representantes, o que sobrou foi uma agenda truculenta e predatória, que começou com a destruição da legislação florestal e agora pretende restringir direitos dos demais atores sociais do campo – índios, quilombolas, extrativistas, assentados e agricultores familiares – e viabilizar a expansão do agronegócio sobre esses territórios e outras terras públicas sem destinação oficial e sujeitas à grilagem.