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Paiakan, tradutor de mundos

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Márcio Santilli

Paulo Paiakan morreu ontem (17), vítima de Covid-19. Grande liderança Kayapó, deixa um legado de luta para os povos da floresta. Leia o texto do amigo e sócio fundador do ISA, Márcio Santilli

Tenho uma ligação muito forte com o povo Kayapó, visitei várias vezes seu território em diversas circunstâncias. Foi Paulinho Paiakan quem me levou pela primeira vez.

Sabia muito pouco naquela época, a Constituição de 1988 tinha acabado de ser promulgada. Havia uma questão muito séria de exploração de madeira nas terras Kayapó e ele me pediu para conversar com os líderes sobre esse assunto. A reunião ocorreu na aldeia Gorotire, a mais populosa da Terra Indígena Kayapó, no Pará.


Na noite anterior à chegada na aldeia, dormimos os dois no mesmo quarto em um hotel em Redenção. Deitados com a luz apagada ficamos conversando sobre um monte de coisas da nossa vida e ele me disse: “Márcio, você está indo pela primeira vez para a terra Kayapó. Eu acho bom explicar que na nossa língua não existe a palavra hóspede. Você vai conversar com os líderes Kayapó nessa circunstância de um visitante”.

Paulinho até tentou me ensinar a falar Kayapó. Cheguei a aprender uma ou outra palavra, mas na verdade o que ele me ensinou mesmo foi como falar com os Kayapó em Português, como usar o Português de uma maneira mais eficaz e mais fácil de ser traduzida em Kayapó. E ele sempre foi o meu melhor tradutor.

Esse é o Paulinho Paiakan, o cara que tentou me transformar em um Kayapó. Um cara que me ensinou muito, não somente sobre o seu povo e a floresta, mas também sobre a vida, sobre a luta, sobre a guerra no sentido simbólico e político da palavra, sobre a vitória e a importância de enfrentar o inimigo ao invés de ficar esperando que ele nos mate.

Esse é o ensinamento que vou levar para o resto da minha vida e que foi dado com muito carinho e muita perseverança pelo Paulo Paiakan.


Rio Vermelho

Teve um tempo em que o Paulo Paiakan tinha um avião que ele ganhou da Anita Roddick, da Body Shop. Uma vez fomo para o território Kayapó com ele pilotando! Nós saímos de Redenção com destino a aldeia A´Ukre, mas lá pelas tantas, no meio do caminho, ele fez uma curva para a direita, imagino que a direção norte ou noroeste, e me disse: “Espera aí, vou te levar pra conhecer um lugar que é muito lindo e onde quero fazer a minha casa. Esse lugar se chama Rio Vermelho”.

Nós voamos mais uns minutos na direção norte e chegamos a um lugar deslumbrante. Um platô bem plano de Cerrado que terminava em uma cachoeira impressionante, que descia por uma boca da pedra, e lá embaixo formava um rio, o Rio Vermelho.

Nós sobrevoamos esse lugar. Havia um ponto mais plano do platô, em um lugar que eles já tinham afastados algumas pedras. Paiakan fez um rasante e disse: “Está dando para descer!”. Confesso que foi muito emocionante descer naquele lugar que não era um pista de pouso. Vimos de cima esse lugar, esse Rio Vermelho, essa bacia, essa cachoeira, esse lugar incrível em um platô de Cerrado e de repente apareceu uma cachoeira que cai em uma floresta.

Depois de alguns anos, Paiakan construiu a casa dele nesse lugar. Uma vez eu fui visitá-lo no Rio Vermelho, em uma casa que ele construiu na beira do rio. Fiquei com ele quatro dias, comendo o que ele pescava. Eu ia pescar com ele, mas era um mero auxiliar! Ele tinha um dom de pescador incrível, catava as frutas na beira do rio e com elas fisgava os peixes. Era uma fartura incrível naquele lugar, cheio de frutas e peixes.

Esse é o lugar desse mundo que tem a marca mais forte de Paulo Paiakan. Andei com ele por aquelas trilhas, na floresta ao longo da bacia e ele me mostrava coisas incríveis. Ele apontava e dizia: “Tá vendo aquela castanheira na beira do rio, Márcio? Castanheiras não nascem na beira do rio, aquela castanheira foi plantada por um dos nossos antigos Kayapó, que peregrinava e vivia nessa região”. Rio Vermelho, Terra Indígena Kayapó, é a casa de Paulo Paiakan.


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