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Regulamentações excessivas colocam coletores e produtores de sementes na informalidade e dificultam cumprimento dos acordos climáticos
Desastres climáticos, mudanças ambientais, problemas na saúde e na economia são algumas das situações possíveis apontadas como consequência do aumento da temperatura. O último relatório do Painel Intergovernamental Sobre Mudanças Climáticas (IPCC), divulgado em outubro de 2018, aponta que países em desenvolvimento como o Brasil serão os mais afetados. E o que é possível fazer para evitar que o calor aumente? A resposta: plantar florestas.
Estudo recente publicado na revista científica Nature afirma que somente as florestas podem ajudar a manter o aquecimento global abaixo de 1,5 ° C, que é a meta estipulada para evitar mudanças ambientais consideradas perigosas. A recomendação é que o desmatamento pare e os programas de restauração priorizem a regeneração de florestas naturais. Os autores afirmam, ainda, que a recuperação pode ser acelerada pelo plantio de espécies nativas.
Neste contexto, programas de restauração ecológica em larga escala em todo mundo têm demandado a produção de sementes de variadas espécies nativas. No Brasil, a regulamentação ambiental e o compromisso firmado no chamado Acordo de Paris, durante a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas em 2015, indicam que o país deve restaurar 12 milhões de hectares até 2030.
O fornecimento brasileiro de sementes nativas é uma atividade de base comunitária com amplo potencial de promoção de desenvolvimento rural e enfrenta barreiras diante de exigências estabelecidas pela lei de sementes (Lei nº 10,711/2003) pautadas em documentações técnicas e excessivas. As regulamentações são definidas e inspecionadas pelo Ministério da Agricultura (MAPA) com padrões baseados em abordagens agrícolas e silviculturais. De acordo com as exigências, produtores , coletores, laboratórios e técnicos devem ter credenciamento no Registro Nacional de Sementes e Mudas (RENASEM) no Sistema Nacional de Sementes e Mudas. A formalização das atividades envolvem procedimentos técnicos e documentação específicas para operacionalizar.
“O resultado é uma vasta rede de coletores e produtores informais que são ‘invisíveis´e desconhecidos pelas autoridades reguladoras”, aponta estudo realizado por pesquisadores do Brasil e Austrália e divulgado recentemente na Restoration Ecology, revista científica internacional.
O primeiro programa nacional de fomento às redes de sementes no Brasil foi rapidamente fragmentado no fim dos anos 2000, principalmente porque as organizações não conseguiram operacionalizar as exigências legais atreladas à gestão de mercados de restauração.“A impossibilidade de implementar a lei de sementes impede o cumprimento de metas de restauração e o desenvolvimento de uma economia emergente de base comunitária”, aponta Danilo Ignacio de Urzedo, pesquisador e um dos autores do estudo
A publicação ainda evidencia a ampla falta de conhecimento sobre sementes nativas, já que apenas 51 espécies têm testes de qualidade validadas pelo MAPA, e a escassez de laboratórios para teste de qualidade. Dos 225 credenciados, apenas 16 laboratórios de sementes operam testes com espécies florestais no Brasil e estão concentrados na região sul e sudeste - longe de locais onde os programas nacionais requerem restauração em larga-escala e de onde a grande maioria das sementes é coletada.
“Por fim, a produção de sementes nativas não é regular e os produtores precisam aplicar abordagens técnicas para cumprir com os regulamentos que geram altos custos, como a contratação de um responsável técnico. Como resultado, o setor tem sido perpetuado como informal”, evidencia o estudo.
Para a pesquisadora Fátima Piña-Rodrigues, uma das autoras do artigo, simplificar a legislação permitirá a legalização da produção. Laboratórios em universidade poderiam ser credenciados com princípios mais simples e ajudariam a suprir as demandas de quantidade e diversidade, consideradas como as mais importantes no momento.
Em relação ao credenciamento dos coletores, os dados do MAPA reforçam ainda mais a informalidade do setor. Embora o número real de produtores seja desconhecido, no banco de dados do ministério há apenas 264 coletores de sementes formalizados, enquanto que na Associação Rede de Sementes do Xingu (ARSX), iniciativa que em 12 anos se consolidou como a maior rede de comercialização de sementes no Brasil, há 600 coletores, entre indígenas, ribeirinhos, agricultores familiares e urbanos.
Os programas de produção de sementes nativas em países em desenvolvimento têm focado em sistemas comunitários a partir de associações, cooperativas e negócios sociais. Com a necessidade de restauração, as redes têm buscado alinhar as demandas das comunidades com os mercados para estruturar parcerias comerciais justas.
A ARSX já produziu mais de 221 toneladas de sementes, possibilitando a restauração em andamento de mais de 6 mil hectares, via técnica de semeadura direta da muvuca e por isso tem sido tratada com uma experiência modelo.
“A rede surge de uma demanda muito específica para restauração das nascentes do rio Xingu. Hoje, após doze anos, já envia sementes para cinco estados”, conta Bruna Dayanne Ferreira, diretora da ARSX. “A força que fez a rede crescer e se manter até hoje é acreditar no que fazemos Por se pioneira, a iniciativa teve que experimentar sem medo de errar e o `fazer juntos` nos fortaleceu”, acrescenta Cláudia Araújo, também diretora da Rede.
Embora a organização em escala local crie um mercado consistente que possa tornar a produção de sementes nativas viável financeiramente, as organizações exigem altos investimentos e estrutura para capacitação e operacionalização técnica. Fátima comenta que o principal foco das redes tem sido a contribuição na organização das cadeias produtivas e capacitação e formação de pessoas, coletores e produtores de sementes. “É um mercado formiguinha que tem atendido demandas locais. De fato essas redes não tem recebido apoio governamental, mas conseguem se manter por meio de projetos e captação de recursos. Cada uma encontra seu nicho e sua forma de atuação e aos poucos elas estão se proliferando pelo país. É um movimento pequeno mas que a gente vê crescer a cada dia.”
“Para nós coletores, a rede é importante na articulação comunitária, principalmente porque quando você está no grupo, essa questão do comunitário, do coletivo se torna muito mais forte, porque para cada coletor que você perguntar, ele vai dizer claramente que sozinho ele não consegue” conta Milene Alves de Oliveira, integrante da ARSX. “E ela gera renda para quem quer ficar na sua terra e trabalhar com a natureza, ou seja, é uma alternativa a mais que promove autonomia.”
O desenvolvimento de políticas e programas de restauração e incentivo à produção de sementes requer uma maior participação social nas tomadas de decisão para que haja uma negociação coletiva entre os diferentes grupos que fazem parte dessa cadeia produtiva como os coletores, compradores e também os legisladores.
De acordo com os autores do estudo, as atuais normas devem ser adaptadas para contextos locais, englobando estratégias como a garantia da origem e identidade das sementes nativas, a flexibilização do processo de acreditação de laboratórios, a promoção de mercados de sementes para restauração, incentivo à pesquisa para fornecer inovação tecnológica e apoio aos negócios locais.
Fátima lembra que no MAPA há uma representação participativa, a Comissão Nacional de Sementes e Mudas, na qual o Instituto Socioambiental (ISA) parceiro da ARSX faz parte, mas que desde 2017 não se reúne. Os representantes podem indicar práticas e ações sobre a legislação de sementes e mudas, apesar da decisão ser sempre do ministério. “Mesmo assim é um mecanismo legal e temos feito o pedido de reativar essa comissão.”
Os autores do artigo da Restoration Ecology reforçam que para sistemas duradouros, as políticas e os programas devem apoiar os produtores e coletores no desenvolvimento do planejamento estratégico de negócios com foco nas operações financeiras, abrangendo o acesso ao financiamento e acordos comerciais. As agências governamentais têm um papel fundamental, para além de fiscalizar, promover apoio técnico, financeiro e créditos para o pequeno produtor.
“A situação não é exclusiva do Brasil, pois produtores de sementes nativas em muitos países em desenvolvimento também tem sofrido limitações para operacionalizar as legislações de sementes. Isso resultou na extinção de vários programas de sementes em regiões tropicais, onde fornecedores informais são responsáveis pela maior parte da oferta de sementes”, explica Ignácio.
O artigo da Nature frisa que os profissionais de restauração, especialistas em florestas e formuladores de políticas devem priorizar a regeneração de florestas naturais. Como demonstrado pelas experiências que já existem no Brasil e ressaltado nos dois estudos, esses arranjos ajudam a gerar renda além de conservarem a biodiversidade. Tais resultados práticos que já foram alcançados pelo plantio das sementes nativas por meio de parcerias com redes de coletores, como a ARSX que tem inspirado novas iniciativas como a Rede de Semenes do Cerrado, Rede de Sementes do Vale do Ribeira e Associação Cerrado de Pé entre outras.