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Na iminência da privatização da BR 163, rodovia que cortou seu território ao meio na década de 1970 e quase os exterminou, os Panará exigem que seu direito à Consulta Livre, Prévia e Informada seja respeitado
“Nós somos os Panará, aqueles que estão humanos (...). Viemos do Leste, da base do céu, de onde o sol se levanta para nos iluminar”. Assim começa o recém lançado Protocolo de Consulta dos Panará, povo que vive em seis aldeias ao longo do rio Nãnsêpotiti, conhecido como Iriri, no estado do Mato Grosso.
Uma comitiva de quatro lideranças foi a Brasília para colocar o documento na mesa do governo e exigir que seu direito à Consulta Livre, Prévia e Informada seja respeitado.
Após terem sido praticamente dizimados na década de 1970 com abertura da BR 163 e na iminência da privatização da mesma rodovia, os Panará exigem que seus direitos sejam assegurados. “Nós nunca fomos ouvidos, consultados e respeitados pelos não-indígenas, por isso fizemos o Protocolo de Consulta do povo Panará, para que isso nunca mais se repita”, diz o texto. [Leia na íntegra]
“O protocolo é um instrumento muito importante, uma ferramenta de defesa de direitos. [Serve] para deixar claro para o estado brasileiro e outros que existem regras relacionadas a todo empreendimento ou medida que possa afetar os direitos dos indígenas”, ressalta a deputada Joênia Wapichana (Rede-RR), que recebeu a comitiva na manhã desta quinta feira (10).
Frente à renovação do Plano Básico Ambiental (PBA), o conjunto de medidas de mitigação dos impactos da rodovia, e da privatização da BR 163, prevista para o ano que vem os Panará querem ser ouvidos e considerados de acordo com suas regras.
“Viemos de longe, foi muito difícil chegar aqui. Agora vocês têm que ir na nossa aldeia”, diz Sinku Panará, cacique da aldeia Nãnsêpotiti, ao entregar o Protocolo para Mateus Salomé, do Ministério da Infraestrutura.
Além do Ministério, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), a Fundação Nacional do Índio (Funai) e a Secretaria do Programa de Parcerias e Investimentos (PPI), se comprometeram a fazer uma reunião na aldeia ainda neste ano para discutir junto com os Panará o passivo do PBA e a construção de um novo plano.
Krentoma, liderança histórica do povo Panará, abre o mapa no Protocolo de Consulta e aponta para o ponto da antiga aldeia Pysypãri: “foi aqui que eu nasci”. A aldeia, que segundo Krentoma, tinha mais de 1.200 pessoas, foi destruída com a abertura da BR 163.
“Me escutem, vocês estão vendo todas as aldeias. Todas estavam aqui, quando era mato, antes da BR 163. Depois tudo foi desmatado, perdemos a nossa mata, os não indígenas destruíram tudo, acabaram com o nosso território”, conta, emocionado.
A estrada cortou o território dos Panará ao meio e a instalação das frentes de obras da rodovia trouxe surtos de gripe e diarreia, provocando o quase extermínio desse povo. Restaram apenas 70 pessoas de uma população estimada, na época do contato, em 400 indivíduos.
“Alguns conseguiram enterrar seus pais para que eles não fossem comidos pelos urubus, outros não tiveram forças para enterrar seus familiares. Depois entendemos que os não-indígenas queriam nos matar para roubar nossas terras e para que não andássemos perto de sua estrada grande”, diz o texto do Protocolo.
Em 1975 eles foram levados ao Parque Indígena do Xingu, onde viveram por 20 anos sem nunca deixar de lado o sonho de voltar para seu território tradicional. Finalmente, em 1996, a Terra Indígena Panará foi demarcada.
Após o retorno, houve um expressivo crescimento demográfico. Em 1997, a população somava 178 pessoas, hoje são quase 600 distribuídas em seis aldeias. [Saiba mais no especial “Panará, a volta por cima dos índios gigantes”]
Localizada na fronteira entre os estados do Pará e Mato Grosso, a TI Panará é refém da expansão agropecuária, estimulada por empreendimentos logísticos como a própria BR-163 e o projeto da EF-170, a Ferrogrão. Grilagem de terras, garimpo, pecuária e aumento das fazendas na região ameaçam a integridade do território.
Somente neste ano já foram desmatados 469 hectares na região da sub-bacia do Alto Rio Iriri, que abrange a Terra Indígena. O assoreamento do rio e a contaminação das águas por agrotóxicos das fazendas localizadas no limite da TI preocupa os indígenas. “Estamos preocupados, a água está secando”, diz Sokren Panará.
Em julho 2017 milhares de peixes morreram no rio Iriri. Após denúncia dos indígenas, que relataram mudança na coloração da água e cheiro forte de putrefação, a Universidade do Mato Grosso (Unemat) produziu um relatório apontando alterações na qualidade da água. Peixes importantes da dieta dos indígenas, como curvina, tucunaré e pacu, foram encontrados mortos e com fungos, colocando em risco a segurança alimentar dos Panará.
[Saiba mais]
Ainda que o Componente Indígena do Plano Básico Ambiental (PBA) da BR-163 tenha sido elaborado em 2006, o subprograma para a TI Panará ainda não foi integralmente efetivado. O Dnit, responsável pela execução do PBA, deveria ter feito uma série de melhorias na infraestrutura da região, como a construção de pontes de acesso às aldeias, mas nada saiu do papel.
Na iminência da renovação do PBA, que vence no final do ano, os Panará exigem que o governo cumpra seu compromisso e que o direito à consulta seja respeitado.
Durante a reunião em Brasília, o representante do Ministério da Infraestrutura, afirmou que o convênio entre o Dnit e a Funai, a responsável pela execução do PBA, será prorrogado até o próximo ano. Com isso, será possível fazer um balanço do passivo do Plano anterior e construir uma nova proposta para o próximo ciclo de PBA indígena.
Os Panará denunciaram a precária situação da parte do ramal que já foi construído. São 25 quilômetros que na época da chuva se tornam praticamente intransitáveis, impossibilitando, por exemplo, o deslocamento de doentes para a cidade. Além do trecho existente, existe o compromisso de construir mais 15 quilômetros e uma ponte que ligue a estrada à aldeia Nãnsêpotiti.
Não houve, no entanto, nenhum encaminhamento específico sobre essa demanda. Apenas o compromisso de realizar reunião entre os órgãos do governo competentes e os Panará antes de finalizar o ano na aldeia Nãnsêpotiti, como é exigido pelo protocolo, com o objetivo de falar publicamente todos os assuntos relacionados aos passivos vigentes e ao futuro da estrada que impacta o território Panará.
Protocolos são as regras que detalham a organização social e a representação política de cada povo e definem a forma como cada um deve ser consultado antes que seja tomada qualquer decisão que possa impactar seus direitos.
Construção de obras, novas leis, formulação de políticas públicas, por exemplo, devem passar por um processo de consulta. Com o recém lançado documento dos Panará, já existem 13 Protocolos feitos por povos indígenas no Brasil.
O exercício da consulta deve se traduzir em um diálogo honesto entre o Estado e os povos indígenas - e o Protocolo é o que faz esse diálogo acontecer. O governo tem a obrigação de perguntar, escutar e considerar a opinião dos indígenas sobre as decisões legislativas ou administrativas que impactem as suas vidas, levando em consideração sua organização social e política.
O direito à Consulta e Consentimento Livre Prévio e Informado (CCLPI) é assegurado pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, pela Declaração das Nações Unidas sobre o Direito dos Povos Indígenas e pela Constituição Federal. O Protocolo de Consulta deve ser considerado como a lei dos povos que completam o marco jurídico dentro do qual o processo de consulta deve acontecer.