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Se Cabral tivesse chegado pelo rio Xingu, o barco teria encalhado

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Diego Ferrite

Em sua 5ª edição, a Canoada Xingu percorreu as águas da Volta Grande do Xingu (PA) junto com indígenas e ribeirinhos para monitorar os impactos de Belo Monte. Leia o relato do publicitário Diego Ferrite sobre sua experiência na expedição



Entre tantas descobertas e redescobertas do Brasil, foi a minha vez de descobrir o rio Xingu. Terra do povo Juruna, os índios Yudjá, que na verdade significa “donos do rio”. Fomos acompanhados pelos donos da casa, ou melhor, do rio. Mas chegando lá descobrimos que já tinha uma visita, que chegou antes e sem pedir licença, sem limpar os pés e sujando todo o ambiente que eles tanto cuidaram com carinho. Aquele tipo de visita que fica meio difícil de mandar embora, e mesmo quando a gente fala que já tá tarde ela não se toca e se instala na nossa casa.

Pois é, já está tarde.

Belo Monte chegou sem pedir licença, se instalou na casa do povo Juruna e lá está. E o que vimos foi a consequência do impacto da visita indesejada que acabou virando moradora do rio Xingu.

Acima da barragem, um rio morto. Abaixo, um rio seco.

Um rio tão seco que nem toda lágrima Juruna seria capaz de preencher o vazio, preenchido unicamente pelas pedras. São muitas pedras no caminho do indígena. Isso porque “ser índio” é considerado uma pedra no caminho de muita gente.


Uma pedra no caminho do lucro desenfreado. Uma pedra no caminho do “progresso”. Outra no caminho dos tratores que chegam ao Xingu para roubar ilegalmente a madeira dos índios Arara (os vizinhos dos nossos amigos Juruna). Uma pedra no caminho da mineradora canadense Belo Sun que tenta se instalar ali em busca de ouro, no mesmo trecho que já tanto sofre por Belo Monte, na Volta Grande do Rio Xingu. Uma pedra no caminho da tal governabilidade.

E por incrível que pareça, é das pedras que os Yudjá têm tirado o seu sustento. Com a seca do rio, os frutos das árvores caem no seco, e não na água como costumavam cair. E os peixes frutíferos, como o Pacu, estão deixando de se alimentar, e em consequência deixando de servir de alimento para os Juruna. Por isso, eles substituíram estes peixes frutíferos por outros, os acarís (ou cascudos), peixes que vivem comendo exclusivamente os musgos das pedras. As tais pedras.

É preciso mesmo ter coração de pedra pra ver tudo isso e não sentir nada.

A lista de consequências é interminável. Com o peixe cascudo exposto, muito pescador ilegal também foi atraído para a região. Pra quem nunca teve um aquário, os cascudos são considerados pedra fundamental: a base para um aquário limpo, já que limpam todo o lodo e a sujeira das pedras. E ali na Volta Grande existem inúmeros tipos de cascudos considerados peixes ornamentais. Os cascudos bola branca, bola azul, preto velho, amarelinho, e o ameaçado de extinção acarí zebra, que é um tipo de cascudo que só existe ali, na Volta Grande do rio Xingu.

Mas vamos ser sinceros, por mais que os cascudos sejam eficientes na limpeza do aquário, não tem peixe capaz de limpar a sujeirada de Belo Monte.

O impacto na alimentação dos Juruna é assustador, e eles procuram cada vez mais alimentos da cidade pela falta de peixes e caças na floresta.

Como toda visita que se preza, a gente reparou em tudo. Reparamos que, mesmo estando no meio da selva amazônica, quase não vimos animais. Um jacaré aqui e outro ali. De pássaros, a maioria eram urubus. E fica impossível não fazer a triste relação dos “urubus de Belo Monte” se alimentando de um rio semi-morto.

Mas os Juruna não se deixam vencer facilmente. Afinal, é ali que estão enterrados também os seus antepassados. E isto significa muito na cultura indígena.

Eles continuam lá, vivos, mesmo com o rio cada vez mais morto. E tentam manter viva a cultura da canoa, mesmo sendo cada vez mais difícil navegar nas águas rasas do Xingu. E é por isso que a canoada de 5 dias acontece todo ano desde o barramento do rio por Belo Monte: para conscientizar o maior número de pessoas sobre a situação dos Juruna, quase como um pedido oficial de ajuda, e também para tentar manter vivo o hábito de remar em uma canoa de madeira. A canoada é pra fora, mas é também pra dentro.

Em diversos momentos as canoas tiveram que ser carregadas nas mãos ou empurradas para não ficarem presas nas pedras. O pessoal da usina “abre e fecha a torneira” do rio sem avisar previamente os Juruna, que podem estar no meio do caminho de casa, sozinhos e sem ninguém pra ajudar a carregar a canoa no seco, voltando da pescaria pro sustento da família.

Um dos momentos mais marcantes da canoada foi o famoso “puxador”. Em determinado trecho o rio simplesmente seca. As canoas têm que ser levadas morro acima, e depois morro abaixo, no braço. Nosso grupo tinha cerca de 100 pessoas, 16 canoas, e 3 voadeiras, incluindo turistas e indígenas, e quase todos se uniram no mutirão que parecia ser um serviço sem fim. Mas na volta, foram apenas os índios, sozinhos, que tiveram que carregar o fardo de serem índios em uma terra que é cada vez menos deles, apesar de no nome ainda continuarem os “donos do rio”.

Sorte a nossa que Cabral veio pelo mar. Se tivesse chegado em 2018, pelo rio Xingu, sua nau teria encalhado nos pedrais. Se bem que, sem Cabral, talvez o rio ainda pulsasse. Coisa que hoje só é sentida nas veias do povo Juruna, onde o Rio Xingu pulsa sempre mais forte.



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