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A Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e a Fundação Nacional do Índio (Funai), em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA), realizaram, entre 17 e 20 de março, o seminário de Educação Escolar Indígena. Participaram 120 pessoas de 13 comunidades indígenas do Distrito de Iauaretê, Alto Uaupés e Rio Papuri
O seminário reuniu diversas etnias, entre elas, Tariano, Tukano, Tuyuka, Waikanã, Kotiria e Arapasso, incluindo lideranças das comunidades e das associações indígenas, representantes da Coordenadoria das Associações Indígenas do Distrito de Iauaretê (Coidi), professores indígenas, pais e alunos. O evento é parte do projeto “Seminários de Educação Escolar Indígena”, lançado em 21 de janeiro de 2014, na Casa do Saber da Foirn, no âmbito da política do Território Etnoeducacional e da perspectiva da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (Pngati), política instituída pelo Decreto nº 7.747, de 5 de junho de 2012.
O objetivo é realizar um diagnóstico ampliado e aprofundado sobre a realidade da educação escolar indígena nas cinco regiões administrativas do Rio Negro, além de promover o intercâmbio de experiências, propor melhorias e inovações de infraestrutura, metodologias de ensino, formação de professores indígenas, elaboração de projetos políticos pedagógicos indígenas e, de forma mais ampla, aprofundar a discussão político-filosófica da educação escolar indígena e suas especificidades rio negrinas.
Educação indígena e educação escolar indígena
O principal ponto de discussão, durante os três dias de encontro, foi a reflexão entre a educação indígena e a educação escolar indígena. Professores e lideranças pontuam a importância de se fortalecer a educação indígena no distrito de Iauareté, através dos pais e dos avós, pois atualmente os jovens têm voltado seus interesses para as coisas da cidade e, cada vez mais, perdendo o vínculo com os conhecimentos de seus grupos étnicos.
O antropólogo e coordenador do departamento de educação da Foirn, Ivo Fontoura, Tariano de Iauaretê, acentua que a escola não deveria ser um lugar de reprodução, mas sim de produção de conhecimentos, além de ser um espaço que possibilite o acesso às formas variadas de saberes. Pontuou também a importância do pensamento filosófico indígena nas escolas destacando como exemplo a origem da dança do peixe e a importância do entendimento do conceito dessa dança, que sem o qual se perde o sentido. Acrescentou que os velhos são os que sabem desses conceitos por serem aquelas pessoas que vivem o cotidiano de forma conectada ao Cosmos.
Professores de Iauaretê enfatizaram grandes preocupações em relação aos atrativos da cidade, que exercem fortes influências, sobretudo nos jovens. Nesse sentido, convidaram os participantes a refletir sobre esse problema, pontuando que a escola deve ter o papel de discutir sobre essas forças externas, que cada vez mais afastam os jovens do acesso à transmissão de conhecimentos, através de suas famílias.
O papel das mulheres
Ediberto Teixeira, professor da etnia Kotiria, considerou a alfabetização na língua materna de grande importância, argumentando que a alfabetização só ocorre uma vez na vida e a língua portuguesa pode ser facilmente ensinada como segunda língua, sem comprometer o bom desempenho dos alunos no processo de ensino-aprendizagem. Destacou, também, sua preocupação com os alunos que saem para estudar no ensino médio na cidade e, por variados motivos, acabam permanecendo nela com grandes dificuldades de sobrevivência. Alertou que o dinheiro acaba, mas a terra não acaba nunca, portanto, é importante fortalecer as comunidades indígenas e cuidar da terra.
As mulheres destacaram a falta de alimentação adequada às famílias que vivem em Iauaretê, enfatizando que muitas famílias já perderam o conhecimento de produzir os alimentos, acostumando-se a comprar os produtos vindos da cidade, sobretudo frangos, por conta da escassez dos peixes na região. Recordaram que as lideranças passadas lutaram muito para conseguir a demarcação das terras, justamente para garantir o bem estar da população indígena, o que significa produzir na roça, pescar e se alimentar bem todos os dias. Enfatizaram que o dever da mulher é também o de repassar os conhecimentos e que essa é a melhor maneira de educar os filhos.
Nildo Fontes, diretor da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – Foirn, destacou a importância da proposta de federalização da educação básica (PEC 32/2013) - de autoria do senador Cristóvam Buarque- para a educação escolar indígena, por considerar o caminho mais viável para a gestão das escolas indígenas em consonância com a política dos Territórios Etnoeducacionais (TEE) e a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental em Terras Indígenas – Pngati.
O TEE Alto Rio Negro e a Pngati deverão, por sua vez, atender as especificidades das escolas indígenas na região, atentando para a infraestrutura escolar, publicação de materiais didáticos - a partir das pesquisas indígenas -, transporte escolar e merenda escolar regionalizada.
Dificuldades nos editais de contratação
Os principais problemas apontados por professores e lideranças indígenas continuam sendo a falta de acesso contínuo à merenda escolar e materiais didáticos, o não reconhecimento – por parte dos conselhos municipal e estadual – dos projetos políticos pedagógicos, dificuldades no reconhecimento e publicação de materiais didáticos específicos, produzidos nas escolas indígenas. A dificuldade mais atual, enfrentada pelos professores indígenas, relaciona-se ao edital de Processo Seletivo Simplificado, realizado pela prefeitura de São Gabriel da Cachoeira, em janeiro deste ano.
O edital 01/2014 propõe a contratação de profissionais da educação sem levar em consideração os professores indígenas que são escolhidos pelas lideranças de suas próprias comunidades, e que, por sua vez, possuem experiência em suas próprias escolas. Com isso, professores indígenas experientes e de suas próprias regiões, ficaram fora do quadro de contratação, pela Secretaria Municipal de Educação de São Gabriel da Cachoeira.
O motivo pelo qual, muitos desses professores, ficaram excluídos do processo de contratação se deve a alguns fatores: a) desconhecerem o processo seletivo; b) não possuírem todos os documentos exigidos; c) não entenderem sobre os mecanismos de inscrição de um edital e d) não possuírem recursos para permanecer na cidade por mais de um mês, devido a morosidade do processo de contratação, pela prefeitura municipal.
Documentos foram redigidos, assinados pelas lideranças e encaminhados para a Prefeitura, Secretaria Municipal de Educação, com cópia para o Ministério Público do Estado do Amazonas.
“Nossos pais tinham respeito com a cachoeira da onça. As mulheres em menstruação não podiam tomar banho e nem as parturientes. Hoje em dia, cresceu a população e as pessoas não respeitam mais. Antigamente também tinha muito peixe e hoje em dia tem muita gente, os benzedores já vieram de outros lugares, começam a tomar banho no rio, jogam resto de cigarro benzido no rio, com isso os peixes vão escasseando. Essas atividades de pesca, antigamente, era muito diferente, hoje em dia o peixe é escasseado e só estamos comendo comida de fora. Por isso que nossa geração atual já tem outro tipo de doença, não são mais as doenças de nossos avós. Isso já foi previsto. O meu avô já havia previsto que Iauaretê ia ser grande, teria muita dificuldade e não teria mais peixe. Eu estou constatando isso agora”. Professora Maria da Glória Maia Gonçalves, da etnia Tariana.
“Nós somos um povo diferente, línguas diferentes, conhecimento diferente. Nosso relacionamento com a natureza é diferente. Temos um relacionamento diferente com as pedras, com as águas, com os peixes. Nós temos sorte de ter uma terra demarcada. Por isso que a escola indígena está aí, para que o aluno continue a defender sua terra.” Professor Ediberto Teixeira, da etnia Kotiria.
“O que nós pensamos? O que está dentro da nossa cabeça? Hoje temos esse questionamento, sobre o que é educação escolar indígena e o que é educação indígena. Nós devemos ter muita preparação, curso de capacitação, realizar planejamentos, trabalhar através de temas transversais, mas hoje em dia nós não trabalhamos mais com temas transversais em nossas escolas. Trabalhamos por disciplinas. Por isso nós estamos fracos, muito fracos. Outros estão muito melhores capacitados. E os culpados somos todos nós, começando pelo Estado e município.” Professor Rafael Brito, professor da etnia Tariana.