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Vitória histórica em defesa dos rios da Amazônia abre caminho para alternativas sustentáveis de geração de energia
O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) negou, nesta quinta-feira (4/8), a licença para a construção da usina hidrelétrica de São Luiz do Tapajós, no Rio Tapajós, em Itaituba (PA), ponto de partida para a implantação de um complexo que poderia ter até nove usinas ao longo do rio. Este sistema implicaria a perda irreparável de biodiversidade endêmica (exclusiva da região) e afetaria milhares de ribeirinhos, além de alagar a Terra Indígena (TI) Sawré Muybu, do povo Munduruku, o que é proibido pela Constituição, como reconhecido pelo órgão ambiental federal.
Vários fatores contaram para esse desfecho. Os escândalos recentes revelaram que a corrupção é epidêmica no setor elétrico brasileiro, deixando claro que as grandes hidrelétricas na Amazônia não atendem apenas ao objetivo anunciado de gerar energia. O processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, notória defensora das megausinas, também contribuiu para a decisão.
Com apoio do Ministério Público Federal e organizações da sociedade civil, os Munduruku promoveram um dos movimentos de resistência mais importantes da história recente da Amazônia, driblando as investidas do governo e das empresas para cooptá-los, realizando a autodemarcação da TI Sawré Muybu e ações de comunicação de repercussão internacional.
A crise econômica também implica forte restrição nos investimentos públicos e não há mais orçamento para tocar grandes empreendimentos. O governo busca reativar o investimento em infraestrutura com parcerias com o setor privado e a atração de recursos externos. A prioridade anunciada pelo presidente interino, Michel Temer, é a conclusão de obras já iniciadas e que estão paralisadas, e não o início de novos projetos, como o complexo do Tapajós.
O caso de Belo Monte (PA) também deve ter sido considerado na rejeição da licença de São Luiz do Tapajós. Apesar do valor do orçamento inicial de Belo Monte ter passado de R$ 19 bilhões para R$ 30 bilhões, suas dívidas socioambientais ainda superam em muito o seu custo nominal. A conta não fecha. Pode ter sobrado dinheiro para a obra de engenharia (e a propina), mas faltaram recursos, poder público e governança para todo o resto. A usina e o governo federal continuam devendo muitas promessas – nada mais do que o respeito aos direitos fundamentais das populações da região.
Belo Monte está operando sem que tenham sido implementadas as medidas para proteger as TIs afetadas e mitigar outros impactos, o que fez com que os povos indígenas da região tenham perdido o controle sobre parte de seus territórios e dos recursos naturais neles existentes. Também faltaram dinheiro e poder público presente para reassentar de forma digna os ribeirinhos deslocados pela formação do reservatório e indenizar os pescadores que perderam seus locais de pesca. Em Altamira, cidade mais impactada pela hidrelétrica, centenas de quilômetros de redes de água e esgoto foram instaladas, mas não foram construídos os ramais e ligações domiciliares que garantam o funcionamento do sistema de saneamento na cidade, cuja população aumentou em mais de 60 mil pessoas em apenas cinco anos. A região tornou-se um dos maiores focos do desmatamento na Amazônia. Em cinco anos, 1.793 km² de floresta foram derrubados, 40% a mais do que o previsto sem a presença da usina. Entre 2008 e 2013, o desmatamento no interior das TIs impactadas aumentou 16,31%. Em 2013, Cachoeira Seca, localizada na região, foi a TI mais desmatada do Brasil.
Belo Monte reitera o esgotamento do modelo de geração de energia operado à custa dos rios e das populações ribeirinhas e baseado no suposto argumento de uma energia hidrelétrica “limpa e barata”. O sistema hidrelétrico do Tapajós daria continuidade à mesma estratégia de aproveitamento da capacidade de geração de energia elétrica dos rios da Amazônia, concebida desde a ditadura militar e reativada durante os últimos governos.
Essa estratégia sempre esteve assentada numa demanda superestimada, que supunha um crescimento anual do PIB – e do consumo de energia – da ordem de 4% ao ano, enquanto que, nos últimos cinco anos, a economia foi se afundando na maior depressão da nossa história recente. A falsa urgência da demanda foi um dos elementos que constituíram o modelo de grandes obras apoiado em cartéis de empreiteiras, financiamentos bilionários de campanhas eleitorais e corrupção generalizada no setor energético brasileiro.
Segundo especialistas do setor elétrico, a defasagem entre a demanda superestimada e a situação real da economia abre um hiato de pelo menos dois anos em que o país poderá reorientar os investimentos para a geração de energia eólica, solar, de biomassa ou de aproveitamentos hídricos que não demandem o barramento dos cursos d’água, assim como para a implantação de redes inteligentes de transmissão, o desenvolvimento de novas baterias para armazenamento e a multiplicação de projetos para a geração distribuída de energia.
Em que pese o acerto da decisão, a negativa da licença de São Luiz do Tapajós é apenas a vitória de uma batalha numa guerra. O processo de demarcação da TI Sawré Muybu ainda não foi finalizado. Além disso, nenhuma nova decisão foi tomada em relação aos outros projetos hidrelétricos previstos no Tapajós. Para os Munduruku e os brasileiros que acreditam num modelo de energia alternativo, verdadeiramente limpo e sustentável, a luta continua.