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Uma só história, uma só batata? Mil problemas...

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Nurit Bensusan, assessora do ISA e especialista em biodiversidade

Temos o vício de uma história única. Para cada lugar, uma só história: para a Argélia, deserto; para o Irã, fundamentalismo islâmico; para o México, imigração ilegal para os Estados Unidos; para Bangladesh, pobreza e mais pobreza; para a China, aquele "made in China", tudo feito lá, mal feito e barato... Mas será que as coisas são assim mesmo?

Os males da história única também afetam povos e comunidades. Índios, quilombolas, ribeirinhos, seringueiros, geraizeiros, extrativistas são vítimas de preconceito e de discriminação com base em uma única história sobre eles, contada e repetida.

A verdade, porém, é que para cada um desses lugares e para cada povo ou comunidade, não há apenas uma história e sim, mil e uma histórias. Bons exemplos disso são as histórias da conservação da diversidade na agricultura. Para quem não sabe da importância da manutenção dessa diversidade e não conhece a história da grande fome das batatas na Irlanda, convido à leitura do box das batatas no final do texto.

Recentemente a FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e para a Alimentação) criou um programa de reconhecimento de sistemas agrícolas tradicionais, o GIAHS (Globally Important Agricultural Heritage Systems). Esse programa ajuda a contar outras histórias sobre os lugares. Por exemplo, na Argélia o programa protege os oásis reconhecidos como sistemas onde a agricultura tradicional preserva os recursos hídricos.

No Irã, existem dois sistemas reconhecidos pelo GIAHS, um ligado à produção tradicional de figos e o outro é um sistema tradicional pastoril nômade que garante uma alta resiliência em relação às mudanças ambientais. No México, a FAO reconheceu as Chimanpas, uma espécie de sistema de multicultivo em ilhas flutuantes, cujas primeiras evidências estão presentes em Teotihuacán. No Bangladesh, o sistema agrícola tradicional reconhecido é similar, são ilhas flutuantes usadas para cultivo nas planícies inundáveis do sudeste do país. Na China, há vários sistemas tradicionais reconhecidos, principalmente ligados a produção de chá e de arroz.

O Brasil ainda não tem nenhum GIAHS reconhecido, mas em 2010, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) reconheceu o Sistema Agrícola do Rio Negro, no noroeste da Amazônia, como Patrimônio Imaterial Brasileiro. Esse sistema, compartilhado por mais de 20 povos indígenas, é entendido como um conjunto de saberes que envolve técnicas de manejo das roças e quintais, um sistema alimentar e redes sociais de trocas de sementes e de mudas que se estende de Manaus até Mitu, na Amazônia Colombiana.

Outro sistema agrícola que pretende o reconhecimento do Iphan, e eventualmente o da FAO, é o dos quilombolas do Vale do Ribeira, no Estado de São Paulo. Um inventário ligado a esse sistema, completado recentemente, mostra que o sistema agrícola também não é uma história única: não é só semente e agricultor (Leia aqui a publicação Inventário Cultural dos Quilombos do Vale do Ribeira). O sistema tradicional agrícola do Vale do Ribeira inclui danças, festas, músicas, ofícios, modos de fazer e muitas outras coisas.

Nesse último fim de semana aconteceu a 9ª Feira de Troca de Sementes e Mudas do Vale do Ribeira, na cidade de Eldorado, em São Paulo. Na ocasião, houve uma discussão sobre mudanças climáticas e a importância da diversidade para garantir um futuro melhor num mundo pior. Essa também não é uma história única: da diversidade de sementes, das formas de cultivar e do conhecimento tradicional mesclado à ciência podem sair novas alternativas para lidar com a mudança do clima. O passado, com suas mil histórias, mostra que sem diversidade, a segurança alimentar fica ameaçada e, em tempos de mudanças climáticas, a perda de diversidade pode significar o fim do mundo...

Conheça aqui os perigos de uma história única, com a escritora nigeriana, Chimamanda Adichie.

A "grande fome das batatas"

A história da Irlanda está umbilicalmente ligada à batata. E a dos Estados Unidos também... A população humana da área que hoje constitui a República da Irlanda caiu de 6,5 milhões, em 1841, para 2,8 milhões de habitantes, em 1961, e, atualmente, está em torno de 4,5 milhões. Tal declínio produziu enormes impactos na história do país e de seu povo e foi causado majoritariamente pela emigração. Cerca de 1,2 milhões de pessoas abandonaram o país e aproximadamente um milhão de pessoas morreram de fome nos anos 1845 e 1846, data da chamada “grande fome das batatas” e começo da grande emigração irlandesa. Entre 1853 e 1900, mais três milhões de pessoas deixaram o país e muitos foram para os Estados Unidos.

A batata, nativa dos Andes, era cultivada pelos incas quando os conquistadores espanhóis alcançaram a região. Por volta de 1570, a batata chegou à Espanha, mas, inicialmente, não fez muito sucesso entre os europeus. Em 1631, chegou à Inglaterra, porém ainda era cultivada apenas como uma curiosidade. Os camponeses franceses atribuíam à batata o poder de causar febres e até mesmo lepra. Um entusiasta da batata, Antoine-Augustin Parmentier, escreveu, entre 1773 e 1789, panfletos e livros dissipando tais temores e incentivando o cultivo da batata. Dessa época em diante, a história da batata na Europa foi um sucesso até a grande fome na Irlanda.

A batata se converteu na base da economia e da dieta alimentar na Irlanda, principalmente para os camponeses, que não comiam nada além de batatas durante o longo inverno. Apesar de monótono, é possível comer só batatas por muito tempo, dado o equilíbrio de nutrientes que possuem. Mas, em 1845, uma doença atacou o plantio, destruindo-o completamente e causando uma fome sem precedentes.

Essa doença das batatas na Irlanda ilustra um dilema constante da agricultura, que por sua vez nos remete à questão da variabilidade genética. Para produzir a ‘melhor’ planta, que proporcionará a máxima produção, agricultores e cientistas cruzam e selecionam as plantas durante gerações até obter a combinação certa de algumas características. Em seguida, desenvolvem todo o plantio a partir dessa forma melhorada; ou seja, todas as plantas possuem um único progenitor, são geneticamente uniformes. É uma troca: variabilidade genética por um ótimo invariável. Pode funcionar bem por algum tempo, mas a falta de diversidade genética torna a variedade única muito suscetível a doenças: se algum fungo, vírus ou bactéria atacar as plantas com sucesso, pode devastar toda a colheita, uma vez que as plantas são, todas, geneticamente iguais.

Os irlandeses cultivavam suas batatas a partir de uma planta ‘melhor’ única. Com o advento da doença, causada por um fungo, perderam não apenas toda a colheita de 1845, como também a possibilidade de reagir em seguida, plantando variedades resistentes. Nas populações naturais, ao contrário, a diversidade genética dos indivíduos assegura que alguns serão imunes à doença e que parte da colheita sobreviverá. Esses sobreviventes darão origem às plantas do ano subsequente que serão, por consequência, resistentes àquela doença. É essa diversidade que os agricultores tradicionais, como os quilombolas do Vale do Ribeira, preservam, plantando sementes que vão se transformando ao longo do tempo e se adaptando às mudanças ambientais.

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