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Artigo analisa a "MP da grilagem", aprovada pelo Senado ontem. Texto foi publicado originalmente no jornal Correio Braziliense de hoje
Rondônia: 2017. Trinta e sete mortos em conflitos fundiários apenas no período entre janeiro de 2015 e setembro de 2016. Os dados comprovam que o governo federal não foi capaz de implementar uma política de desenvolvimento sustentável e, muito menos, uma política de regularização fundiária que respeite os direitos humanos das populações do campo. As notícias de invasões de grandes extensões de áreas públicas e de terras indígenas transformaram-se em rotina.
Para tentar resolver parte dos problemas fundiários e ambientais na Amazônia Legal, foi criado, em junho de 2009, o “Programa Terra Legal”. A justificativa era a de promover a regularização fundiária de posses rurais em terras públicas da União com até 1,5 mil hectares ou 15 módulos fiscais.
O “Programa Terra Legal” deveria ser encerrado em junho de 2017, mas o governo Temer editou, em dezembro, a Medida Provisória (MP) nº 759/2016, que, entre outros assuntos, ampliou a iniciativa para todo o Brasil. Com isso, estima-se que 40 milhões de hectares de terras públicas na Amazônia, que hoje pertencem à União, passem ao domínio privado.
A MP seguiu para a Comissão Mista do Senado. O relator, senador Romero Jucá (PMDB-RR), introduziu significativas alterações. O Projeto de Conversão da MP foi aprovado pela Câmara e segue agora para o Senado. Se aprovado pelo Congresso e sancionado pelo presidente da República, poderão ser regularizadas ocupações de até 2,5 mil hectares. Assim, o “Programa Terra Legal” deixará de ser instrumento de regularização fundiária de pequenas e médias posses rurais para viabilizar a grilagem de grandes extensões de áreas públicas.
O rol de benefícios àqueles que grilaram terras públicas alcança as normas administrativas. Tanto que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), editou a Instrução Normativa nº 87, de 28 de março de 2017. A norma equiparou os preços de titulação de assentamentos, criados por políticas públicas (via de regra, até um módulo fiscal, ou cem hectares) para as famílias mais empobrecidas que vivem no campo, com o preço que deverá ser pago na regularização fundiária pelo programa, beneficiando aqueles que ocuparam irregularmente terras públicas, não raramente consolidadas de forma violenta e ilegal.
Na contramão do discurso governamental, a Instrução Normativa estabeleceu que áreas ocupadas recentemente obtivessem o maior desconto, com redução do preço de titulação em até dez vezes. Só para dar um exemplo: uma nova ocupação irregular, de até 2,5 mil hectares, em Brasnorte (MT), terá o valor reduzido de R$ 10.800,00 para R$ 1.100,00, por hectare. No município, há duas áreas reivindicadas para demarcação pelo povo indígena Manoki. Uma das justificativas para a medida seria a impossibilidade dos titulados pagarem o preço mais caro. Coincidentemente, porém, ela deverá beneficiar grandes proprietários de terras.
Dessa forma, o programa de regularização fundiária transmudou-se em programa de “desregulamentação fundiária”, com intenso subsídio governamental e consequente prejuízo ao erário. Os descontos concedidos caracterizam manifesta inversão do princípio da capacidade contributiva: os que mais possuem pagarão menos ou quase nada. Além disso, há a quebra injustificável do regime de licitação, pois, se há grandes parcelas de terras públicas a ser destinadas, o razoável seria a abertura de concorrência ampla e impessoal àqueles que desejam adquiri-las. Mas não. A medida vem em benefício daqueles que se valeram da regra “o mundo é dos espertos” e expropriaram o patrimônio público.
Enquanto o governo reduz unidades de conservação, a exemplo das MPs 756 e 758, a MP 759 libera importantes remanescentes florestais na Amazônia para a ocupação privada, com o consequente agravamento do desmatamento, ameaça a povos indígenas, comunidades tradicionais e assassinatos derivados de conflitos fundiários.
A implementação inadequada da primeira etapa do “Programa Terra Legal”, ainda no governo Lula, tem sido apontada como uma das causas da retomada do crescimento das taxas de desmatamento na Amazônia. É previsível que, com a MP 759, o país se desvie definitivamente das metas assumidas internacionalmente para contribuir com o enfrentamento das mudanças climáticas por meio da redução da derrubada da floresta e das emissões de gases do efeito estufa dela decorrente.
O mais contraditório é que tudo isso é feito em nome da “segurança jurídica”, quando a invasão de terras públicas é conduta prevista como crime pela legislação brasileira desde 1966. A conta de tanta irresponsabilidade já chegou: recentemente, dez trabalhadores rurais foram assassinados, em Pau D’Arco (PA), outros nove morreram em Colniza (MT) e 22 indígenas Gamela foram covardemente atacados e feridos no Maranhão.
Não podemos simplesmente acreditar que essa nova onda de violência no campo não tenha relação direta com a atuação do Congresso. Como Gabriel Garcia Marquez, podemos começar a escrever, muitas e muitas mais, crônicas de mortes anunciadas.