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O "Trotskista"

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Marcio Santilli

Em nova crônica socioambiental, o sócio fundador do ISA Márcio Santilli conta um pouco de seu curto período à frente da Funai ao lado do antropólogo Jorge Pozzobon, seu chefe de gabinete, o "trotskista"

Fui nomeado presidente da Funai pelo presidente Fernando Henrique Cardoso em setembro de 1995, após alguma embromação. Tive o privilégio de poder indicar nomes da minha confiança para as suas diretorias e demais cargos de confiança. Pedi ao governo a indicação de um gestor público para a diretoria de administração, calçando-me das adversidades burocráticas e facilitando a interlocução com os órgãos de controle do estado. No mais, aproveitei os melhores quadros que já estavam no órgão.

Para chefiar o gabinete da presidência, desloquei o antropólogo Jorge Pozzobom, pessoa querida e que atuava na diretoria de assuntos fundiários. Pedi socorro, provisoriamente, para que ele me ajudasse a segurar o agito do gabinete no primeiro tempo da gestão, já que a sua alta qualificação intelectual e interesse profissional não tinham nada a ver com aquela função.



Na estrutura da Funai inexiste o cargo de vice-presidente. A cada gestão ocorre a designação, pela presidência da República, de um substituto funcional para eventuais ausências do presidente do órgão que, geralmente, recai sobre um dos diretores. No meu caso, pedi ao ministro da Justiça, Nelson Jobim, a designação do chefe de gabinete.

Transcorreram algumas semanas sem que a designação oficial do Jorge se efetivasse, o que gerava transtornos burocráticos a cada viagem minha. Perguntei ao ministro o porque da demora e fui informado que a consultoria jurídica do ministério havia questionado a legalidade da indicação. Em burocratês: o presidente da Funai ocupa um DAS-6 (nível hierárquico do cargo na estrutura administrativa do governo federal) e, segundo a consultoria, o seu substituto deveria ser um DAS-5 (que é o nível hierárquico atribuído aos diretores), enquanto o cargo do Jorge (chefe de gabinete) era de nível DAS-4.

Respondendo ao questionamento, a procuradoria jurídica da Funai elaborou um parecer dizendo que não havia impedimento legal para se designar qualquer ocupante de função de confiança como substituto, pois, ao assumir a presidência interinamente, passa a exercer função de nível DAS-6 automaticamente, com nível hierárquico superior aos demais dirigentes do órgão, sendo, inclusive, remunerado como tal. E apontou precedentes de designações similares havidas em outros órgãos. Jobim aprovou o parecer da Funai, mas, mesmo assim, a designação do Jorge não saía no Diário Oficial da União (DOU).

Alguns dias depois, em audiência com o ministro, perguntei de novo sobre a designação do Jorge. Ele disse, então, que teria surgido uma objeção política da Casa Civil, pois ele seria filiado ao PT: "Você indicou um cara de uma ala trotskista do PT e, ainda por cima, do meu estado! Estou sendo cobrado por isso pelos parlamentares gaúchos da base".

Apesar de conhecê-lo há anos, eu não tinha a menor ideia sobre preferências ou vinculações partidárias do Jorge. Depois, fiquei sabendo que ele era compadre do Miguel Rossetto, deputado federal pelo PT do Rio Grande do Sul e integrante da "Democracia Socialista", uma facção interna do partido tida como sendo de inspiração trotskista. Rossetto foi depois ministro do Desenvolvimento Agrário e secretário geral da presidência.

Respondi ao Jobim que eu nada sabia sobre a opção partidária do Jorge e compreendia o constrangimento político. Mas que tudo o que a Casa Civil estava dizendo dele só reforçava a minha opção por sua designação. Ele reagiu: "Como assim, Márcio?" Expliquei, então, que a tradição na Funai é o substituto conspirar para derrubar o presidente e, sendo ele adversário político do próprio ministro, não teria a menor condição de pretender o cargo. Após segundos de silêncio, ele aquiesceu: "Sabe que você tem razão?! Não tinha pensado nisso..." Alguns dias depois, a designação do Jorge saiu publicada no DOU.

Com três meses de exercício, a direção da Funai apresentou às instâncias superiores de governo uma dupla proposta para a reestruturação do órgão: reforma modesta numa primeira etapa, nos limites da legislação vigente, e mais profunda, visando o resgate da sua institucionalidade de fundação, após a suposta aprovação da reforma do Estado pelo Congresso Nacional. Reestruturar a Funai havia sido o objetivo da minha nomeação. Porém, o ministro da reforma do Estado, Bresser Pereira, achava que não convinha efetivar nem mesmo a primeira etapa da reestruturação, pois suscitaria reações corporativas que poderiam gerar reações corporativas capazes de dificultar a aprovação da emenda constitucional da reforma do Estado no Congresso.

Pedi uma conversa presencial com o presidente Fernando Henrique e expliquei que eu não tinha interesse em permanecer na presidência da Funai. Relatei a objeção do Bresser e ele informou que forçaria a barra por uma votação em breve da reforma do Estado pelo Congresso. Respondi que o órgão e o seu governo já dispunha de uma (na verdade, duas) proposta específica para a reestruturação da Funai e que poderia executá-la no momento que mais lhe conviesse, não fazendo muito sentido que eu permanecesse no cargo para esperar por ele. A discussão dentro do órgão sobre essa proposta já estava produzindo reações corporativas que se esvaziariam com a nomeação de outra pessoa. O Lucas (meu filho mais novo) tinha nascido e, além disso, eu preferia trabalhar no terceiro setor. Mas ele me pediu que eu esperasse a decisão do Congresso sobre a reforma administrativa e eu esperei.

Porém, nas semanas seguintes, o Congresso foi desidratando completamente a proposta de reforma administrativa. Não vale a pena, aqui, entrar em detalhes sobre o seu mérito, mas o fato é que o Estado estava preferindo continuar podre e inerte. A ciência política ensina que as burocracias não se reformam, só se reproduzem, a menos que sejam impactadas por movimentos populares ou por fortes direções políticas. A aprovação (na verdade, rejeição) da pífia reforma administrativa pelo Congresso, foi a senha para eu apresentar o pedido de demissão.

No dia seguinte, reuni a diretoria da Funai, com o Jorge presente, e informei que iria ao ministério da Justiça para entregar a minha carta de demissão. Pedi aos diretores que permanecessem no exercício das suas funções até que fosse nomeado o meu sucessor. Precisei de algum tempo para finalizar a carta e, quando cheguei à garagem para pegar o carro oficial rumo ao ministério, lá estava o Jorge, com um envelope na mão: "Entrega a minha junto!". E eu entreguei. O mais interessante foi que, no dia seguinte, o Jorge - "trotskista" e tudo - foi convidado pelo chefe de gabinete do Ministério da Justiça, José Gregori, para assumir a presidência da Funai. E não topou.

Eu nunca soube se o Jorge foi, ou não, trotskista. Olhando para a cara dele, parece que sim. Mas eu acho que não, mesmo que em algum momento ele tenha se encantado com a ideia de uma revolução permanente. Acho que ele acreditou mais nos Hupda (leiam "Vocês Brancos não têm Alma") e no Freud do que no Trotsky.

Com inteligência criativa e fino bom humor, costumava me ligar na madruga: "Presidente, que horas o Senhor deve chegar ao hospício?" Quando caiu gravemente doente, ele me disse que atribuía o câncer às tensões vividas na Funai. Assim sendo, temo pela extensão da minha contribuição para a sua agonia.

Beijão Camarada!!!

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