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Rede composta por 50 Agentes Indígenas de Manejo Ambiental (Aimas) monitorou a forte estiagem nos três primeiros meses de 2018 no noroeste amazônico
O início de 2018 foi marcado por uma grande seca no Alto Rio Negro e seus afluentes. A região mais chuvosa de toda Bacia Amazônica passou por uma estiagem atípica nos três primeiros meses do ano que causou perdas de cultivos nas roças, mortes de peixes em lagos e pequenos igarapés e até mesmo um evento inédito de chuva de gelo (veja box no final do texto). Essa situação fez com que a Defesa Civil do Estado do Amazonas decretasse “estado de alerta” em três municípios do Baixo ao Alto Rio Negro (Barcelos, Santa Isabel do Rio Negro e São Gabriel da Cachoeira). E foi capa do principal jornal do Amazonas.
Dificilmente na região acontecem mais de 15 dias seguidos sem chuva, mas esse ano pesquisadores indígenas conhecidos localmente como Aimas, registraram praticamente 40 dias seguidos de seca, com a maior parte do tempo de sol forte, e somente um dia com muita chuva. “O mês de janeiro foi seco. Fevereiro também. As constelações que iam ‘cair’ nesses meses nem ‘caíram’ mais. Porque aconteceu somente verão. Em janeiro e fevereiro nem ‘caíram’ mais aquelas Constelações de Jacundá e Camarão, e continuou o verão, Verão de Cucura, que foram duas semanas direto. Esse rio todo (Rio Tiquié, afluente do Negro), estava seco nesses dias, antes de 15 de março”, explicou Rogelino Cruz Alves, da etnia Tukano. Diz-se que “o cair” de uma constelação provoca o estrondo de um trovão, e começa a chuva.
As constelações astronômicas eram a principal referência do tempo para os povos da chamada área cultural do Rio Negro. Como são poucos os que ainda têm esse conhecimento, é um tema importante abordado nas oficinas do Projeto de Monitoramento Ambiental e Climático, pelo menos na região do Rio Tiquié. Nas narrativas de origem dos povos que ali habitam, cada constelação está associada a algum episódio da criação do mundo. Diz-se que “o cair” de uma constelação provoca o estrondo de um trovão, e começa a chuva. As constelações que marcam eventos cíclicos são as que se põem em seguida ao sol, ainda no início da noite, durante esses períodos marcados.
Rogelino é um dos veteranos da turma de pesquisadores indígenas, com mais de 10 anos de experiência no projeto de pesquisa intercultural cujo objetivo é promover o diálogo entre os saberes indígenas e não indígenas no acompanhamento dos ciclos socioeconômicos e socioecológicos no Rio Negro. Desse projeto, que é uma parceria do Instituto Socioambiental (ISA) e da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), financiado pela Fundação Moore, participam cerca de 50 Aimas espalhados por uma vasta região que se reúnem em pelo menos três oficinas anuais para discutir sobre eventos ecológicos cíclicos, narrativas de origens e o manejo do mundo. Eles/as também organizam atividades de manejo ambiental em suas comunidades.
No baixo curso do Rio Uaupés, outro afluente do Negro, a seca parece ter sido ainda pior. No primeiro encontro dos Aimas em 2018 nesta localidade, os pesquisadores discutiram esse evento atípico e escutaram os velhos conhecedores de suas comunidades. “Desde que eu me lembro, de adolescente até agora na juventude, nunca vi uma seca tão forte assim. Devido a isso os peixes vêm morrendo em alguns lagos, a água fica quente, e os peixes começam a morrer”, contou o Aima Rosivaldo Miranda, 27 anos, Pira-Tapuya, morador do Baixo Uaupés.
Também chamou a atenção dos pesquisadores o calor anormal nos dias de seca, e a quantidade de areia depositada no Rio Uaupés. “Vocês sabem que os tempos não eram assim, dava uma quentura com vento calmo. Mas esse ano não foi assim. Passou do limite mesmo, muita gente reclamando da quentura. A água do nosso porto ficou parecendo uma água que você esquenta numa bacia. Essa seca desse ano passou do limite do ano retrasado. Mas não é que secou: são as praias que estão mudando”, afirmou o Aima José Ivanildo da Silva, da etnia Desana.
Segundo Gerbardo Dias Castro, conhecedor da etnia Tariano, de 57 anos, nos idos dos anos 1970-1980 aconteceram secas ainda mais drásticas, mas a diferença é que não existiam tantas praias, e ele se pergunta de onde veio tanta areia nesse ano de 2018. Uma constatação advinda das discussões na oficina é que nesse período comentado por Gerbardo, o normal era um período de estiagem, ou “verão”, como se diz localmente, superior a 15 dias, da mesma forma como aconteceu no início deste ano. Isso possibilitava aos índios queimar melhor suas roças, procedimento necessário para abrir espaço na floresta aos seus diversos cultivos, sendo a mandioca o principal deles. “Quando eu cresci nos anos 1970, a seca era diferente, o finado meu pai contava que a estação era assim bem certa, marcada. E nesses tempos mudou muito", diz Paulo Miranda, da etnia Pira-tapuya.
Na segunda quinzena de março as chuvas voltaram e os rios voltaram a encher. Esse fenômeno também ocorreu de modo bem drástico, com alguns moradores de São Gabriel da Cachoeira relatando que o rio subiu mais rápido do que de costume. Mais informações sobre a seca de 2018 e os ciclos socioecológicos indígenas poderão ser obtidas no próximo número da Revista Aru, publicação periódica semestral de pesquisa intercultural da Bacia do Rio Negro, previsto para maio.
No Rio Içana, na Terra Indígena Alto Rio Negro, foi registrada pela primeira vez uma chuva de granizo, ocorrida no dia 17 de março passado. Vídeos foram gravados pelos moradores e repassados à Rede de Comunicadores Indígenas do Rio Negro pelo comunicador Plínio Baniwa. A chuva de gelo causou muito espanto na comunidade e, sobretudo, deixou os moradores intrigados porque ela caiu em meio a uma forte seca. Saiba mais aqui e assista aos vídeos.
O climatologista Antônio Nobre recebeu os vídeos do granizo no Içana e comentou especialmente para o Programa Rio Negro do ISA. “Devido aos efeitos combinados do desmatamento e das mudanças climáticas, a circulação atmosférica está mudando na Amazônia. Fenômenos como esse se tornarão mais comuns. Veja que estiagem prolongada e queda de granizo parecem incompatíveis, mas não são. Quando há muita poeira e fuligem no ar, e pouco vapor, as gotículas que se formam não são grandes o suficiente para caírem até o solo. Cada vez que esse processo se dá a nuvem cresce em altura. Quanto mais alto vá, mais frio o ar, e portanto maior a chance de se formar gelo, daí o granizo”, explicou o cientista, um dos maiores especialistas em clima no Brasil.