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Diários de Belém III

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Nurit Bensusan

Leia o terceiro relato enviado de Belém pela coordenadora adjunta do Programa de Política e Direito Socioambiental do ISA, Nurit Bensusan, que participa do 16º Congresso da Sociedade Internacional de Etnobiologia - Belém+30


9/8 - quinta-feira

Sabe o que os Wayãpi têm em comum com a Catherine Deneuve? Ou os Teko com a Torre Eiffel? Ou o que os Palikur têm a ver com Napoleão? Todos são franceses! É isso mesmo, acabo de descobrir que Wayãpi, Teko, Wayna e Palikur não são povos indígenas e sim, franceses, e somente franceses. Sim, “na França, todos são franceses, não há povos indígenas...” , assim nos explica a pesquisadora francesa que apresenta a lei de acesso ao conhecimento dos povos indígenas da Guiana Francesa... ups! Não, povos indígenas não... franceses! Isso deve ser uma versão colonial do bordão: liberdade, igualdade e fraternidade. Ou seja, a visão colonial, assimiladora, partidária da geleia geral, onde todos são iguais quando convém e diferentes quando desejável, continua de pé, fazendo história.

Além do que escutamos e vemos nas apresentações múltiplas do Congresso da ISE, há as conversas nos corredores da feira. Entre uma pulseira e uma cuia, fico sabendo que muitos dos famosos chefes da gastronomia nacional não são figuras populares em Belém; entre uma cerveja de bacuri e uma pintura corporal, me dou conta que a questão de gênero entre os povos indígenas é ainda mais complicada do que eu imaginava; entre um brinco e uma cesta, descubro que apesar dos grandes avanços, ainda somos paternalistas e temos muita dificuldade de respeitar de fato as outras formas de viver, e assim vai... Ou assim vou eu, ficando, a cada momento, mais preocupada com o que vem depois do Belém + 30...


Em um momentary lapse of reason, assisto uma apresentação sobre o chapéu tradicional das mulheres do Quirguistão (país da ex-União Soviética), o elechek. Sou conduzida para a Ásia Central, há milhares de quilômetros de Belém. Descubro que ali há um esforço de resgate da cultura nômade local, que vai da tradição de manejar e preservar pastagens, passando pelas formas de caçar, até os sistemas educacionais, passando, é claro, pelo uso do elechek.

E quando achei que era isso, veio a música... Aprendo que havia 24 diferentes instrumentos musicais tradicionais típicos do Quirguistão e que a maioria se perdeu no período soviético e só sobraram cinco. Os soviéticos reconheciam apenas três dos instrumentos tradicionais como instrumentos e os músicos que tocavam os outros não eram sequer reconhecidos como músicos. Nas escolas, só se aprendia música clássica e russa. Hoje há um empenho em resgatar os instrumentos tradicionais e parece que está funcionando: eu escutei cinco deles! Ouça abaixo.

Mas, é claro que isso me fez ficar ainda mais perturbada: a que limites pode chegar a repressão às culturas tradicionais? A tentativa de varrer do mapa todos os aspectos da cultura quirguistã, transformando todos em cidadãos igualmente soviéticos, não difere essencialmente das missões religiosas na Amazônia tentando acabar com todas as culturas indígenas que encontravam pela frente, com a esperança de fazer a todos igualmente cristãos...

Por outro lado, há a resistência e a resiliência, de quem insiste em olhar para o futuro. Mas não é apenas a resistência do Quirguistão, em forma de música, que se lança para os próximos 30 anos, na esperança que Belém + 60 seja, mais que tudo, uma festa da diversidade. É o crescente protagonismo dos povos indígenas e das comunidades locais que fará a diferença, pautando os instrumentos que não fazem música, mas que garantem direitos. É a ideia, aventada em uma apresentação de quem trabalha com a história e com a arqueologia da Amazônia, de que temos que olhar para o futuro, pensar numa arqueologia do futuro. Haverá uma nova carta de Belém, mas é difícil imaginar que ela terá um papel tão relevante como a da carta de 30 anos atrás, mas essa carta tem que, pelo menos, lançar possibilidades de futuros...

A ver, amanhã...

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