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Pesquisadores do Rio Negro visitam coleção Koch-Grünberg na Alemanha

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Aloisio Cabalzar, com colaboração de Andrea Scholz e Thiago Oliveira

Coleção de artefatos do Alto Rio Negro no Museu de Etnologia de Berlim foi o mote para uma jornada de trabalho conjunta entre conhecedores e pesquisadores indígenas e não indígenas

Uma viagem a Berlim (Alemanha) entre os dias 2 e 15 de outubro foi o início de uma colaboração que tem um duplo objetivo. Por um lado, despertar o interesse das novas gerações indígenas por essas coleções, fortalecendo os conhecimentos e práticas de manufatura e uso desses artefatos e, ao mesmo tempo, aproximar os museus e seu público dos povos que os produziram, permitindo entender os objetos em seu contexto social e histórico. Essa iniciativa é inspirada na preocupação com o papel dessas coleções hoje, e como podem articular-se a projetos relevantes para os povos indígenas.

No Museu Etnológico de Berlin existem várias coleções de objetos da região do Noroeste Amazônico, destacando-se aquela composta 1196 objetos feita durante a viagem de Theodor Koch-Grünberg nos primeiros anos do século XX. Há outras coleções, mais antigas, do século XIX, como a de Robert Schomburgk (1840) e Casper (1848), e mais recentes, como a de Petersen (coletada provavelmente nos anos 30), mas significativamente menores que a de Koch-Grünberg. Essa coleção abrange todos os aspectos da vida dos povos indígenas, desde instrumentos de pesca e da lida na agricultura, até ornamentos plumários usados nas festas e rituais. Alguns deles, como o escudo trançado de uso ritual, não são mais vistos na região. Outros, mesmo sendo ainda confeccionados, mostram um refinamento pouco comum nos dias de hoje.



Koch-Grünberg e a coleção em Berlin

“A cada momento chegava alguém com um desejo distinto. Por aqui tinha que negociar duas grandes flautas yapurutu, acolá, uma mulher apareceu com dois enormes abacaxis e um beijú que troquei por quatro caixinhas de fósforo; Mandú desejava munição para caça; meus remeiros queriam linha e agulha para remendar as calças que haviam recebido como pagamento e agora queriam ajeitar para seus tamanhos respectivos", escreveu Theodor Koch-Grünberg há 115 anos.

"Um me pedia tabaco, outro remédio para o filho doente. Ocasionalmente tive que desempenhar a função de médico, ao mesmo tempo em que atendia a alguns índios que queriam ver meu livro de ilustrações, explicar a forma de usar a espingarda e a maneira de tocar o trompete; além disso, tinha que cozinhar, preparar o chá, registrar a temperatura ambiente e fazer anotações linguísticas e de toda classe. Tinha que escrever tudo rapidamente, já que as impressões nesse lugar tão interessante se desvaneciam tão rápido quanto chegavam. Tampouco à noite tinha oportunidade de descansar. Quando os moradores já se encontravam no mais profundo sono, dedicava-me a revelar as placas das fotografias que havia tomado durante o dia e as lavava no rio”, relata.

Essas palavras foram escritas em 1903, em uma viagem de Theodor pelo noroeste amazônico, quando estava em Cururucuara, maloca no Rio Aiari, afluente do Içana, próxima à atual comunidade Canadá. Viajante incansável e etnógrafo versátil, foi desenhista e fotógrafo, descreveu e documentou em detalhes e com entusiasmo diferentes aspectos da vida dos povos indígenas do Alto Rio Negro, mantendo atenção permanente a sua cultura material. Produziu copiosamente, legando além de suas publicações, que são referência constante para os pesquisadores dessa região, diários manuscritos (arquivados em Marburg) e a coleção de objetos (em Berlin, Belém e, em menor número, em outras cidades alemãs). Por sua formação e habilidades, ele pode ser considerado um dos primeiros etnógrafos profissionais a viajar pela Amazônia – e dos mais importantes. Foi capaz, ao mesmo tempo, de registros minuciosos sobre artefatos e de generalizações sobre os povos, suas culturas e línguas, inaugurando assim um século de etnologia dessa região.

Em 1903, ele chegou ao Brasil por Belém, para conhecer os povos indígenas do noroeste amazônico, uma viagem prevista para um ano, mas que acabou se prolongando por dois. Ele empreendeu essa viagem quando trabalhava no Museu Etnológico de Berlin, como assistente de Karl von den Steinen, com quem já havia realizado uma viagem ao Xingu. Inicialmente, a viagem dele tinha sido prevista para o Putumayo, por orientação de von den Steinen, mas, já no Brasil, Koch-Grünberg decidiu viajar mesmo para o Alto Rio Negro, que já era sua intenção inicial. É interessante registrar aqui que, nas cartas entre os dois, ele sempre justificou sua mudança de planos em razão da qualidade e a quantidade de objetos que esperava coletar no Rio Negro, o que explica sua avidez em colecionar.

Na viagem ao Noroeste Amazônico que redundou na publicação do extenso livro “Dois Anos entre os Índios”, ele viajou ao longo de vários rios que formam o Negro – Içana, Uaupés, Querari, Cuduiari, Tiquié, varando por terra para Pirá-Paraná e Apapóris. Embora tenham sido tempos turbulentos, com movimentos messiânicos e abusos de comerciantes e patrões, ele encontrou muito da vivacidade do cotidiano das comunidades indígenas, com suas rotinas de trabalho, festas, brincadeiras. Apesar das dificuldades e imprevistos da viagem, Koch-Grünberg persiste em sua admiração e entusiasmo pelos indígenas, sua engenhosidade e originalidade. Pesquisar essa coleção hoje, com as informações sobre a procedência dos objetos (ele mesmo trabalhou na coleção depois de depositada no Museu) e o relato de sua viagem, permitiu revisitar esse século de história de transformações e resistência dos povos indígenas.

O trabalho no Museu

No Museu Etnológico de Berlin, em Dahlem Dorf, no subúrbio da capital alemã, permanecem todos os objetos coletados por Koch-Grünberg. Com exceção de 57 peças, sobreviveram a duas grandes guerras, sendo por vezes guardados em locais mais seguros, longe dos bombardeios, mas menos preparados para tanto, o que exigia uma dose adicional de veneno para sua conservação. Até hoje esses venenos geram preocupação para os conservadores, e a manipulação dos artefatos precisa ser feito com uso de luvas, jaleco e máscara, para evitar alergias e algum tipo de intoxicação.



Entre 4 e 10 de outubro, uma equipe intercultural e interinstitucional, proveniente do Brasil e da Colômbia, se juntou à equipe do Museu e outros colaboradores para revisitar a coleção de Koch-Grünberg, pesquisar e conversar sobre esse legado dos povos indígenas do Rio Negro. Participaram dessa imersão sete conhecedores / pesquisadores indígenas, três do lado brasileiro e outros quatro do lado colombiano, além de dois antropólogos e a equipe do Museu. Guilherme Tenório é bayá (mestre de cerimônia e de cantos e danças) tuyuka, do Alto Tiquié; Damião Barbosa é yebamasa (makuna) do igarapé Castanha, afluente do Tiquié, e Orlando Fontes é baniwa de Ucuqui, no Alto Rio Aiary – ambos são agentes indígenas de manejo ambiental, pesquisadores indígenas que buscam aprender com os mais velhos ao mesmo tempo em que estão envolvidos com um agenda de pesquisas interculturais; Diana Guzmán, desana, é professora e coordena o Museu Etnográfico Regional Indígena na Escola Normal Superior Indígena María Reina de Mitú; Maria Idaly Mejia e Orlando Villegas, ambos kotiria, são, respectivamente, assistente de pesquisa e pesquisador docente no mesmo museu; e Lourdes Villegas é conhecedora e artesã kotiria. Andrea Scholz, antropóloga e coordenadora do projeto “Saberes Compartilhados”, e Helene Tello, restauradora, são do Museu de Etnologia e coordenaram os trabalhos em Berlin; juntamente com Aloisio Cabalzar, coordenador-adjunto do Programa Rio Negro do ISA, e Thiago Oliveira, pesquisador do Museu Nacional e do Museu do Indío do Rio, também antropólogos. Três outros especialistas, Alexander Brust (curador do departamento das Américas do Museum der Kultur de Basel, Suiça), Michael Kraus (curador da coleção etnográfica da Universidade de Göttingen e especialista em Koch-Grünberg) e Diana Gabler (conservadora no Museu Americano de História Natural de Nova York), também participaram parcialmente dos trabalhos nas coleções.

O trabalho na coleção contou com sessões conjuntas, com todos, e em três grupos. A equipe da Colômbia trabalhou a maior parte do tempo alimentando a plataforma digital, multilíngue, criada para reunir informações passadas e, sobretudo, atuais sobre cada objeto. Os objetos do Museu de Mitú também estão sendo incluídos aí. Com elas três, tivemos a possibilidade de conhecer um pouco mais a perspectiva das mulheres, que trouxeram também as fibras vegetais (curauá e tucum) para a discussão do grupo sobre seu preparo e usos.

Orlando (AIMA) e Thiago Oliveira dedicaram-se à análise da coleção de cerâmica recolhida por Koch-Grünberg em 1903 nos Rios Içana e Aiari, junto aos Baniwa. Havia peças de toda a área baniwa na coleção, desde Tunuí, Médio Içana, até o Alto Aiari. As peças se destacam por suas boas condições de conservação, sendo uma mostra representativa da qualidade da cerâmica arawak. O trabalho consistiu na identificação dos tipos de potes presentes na coleção – camutis, tigelas, pratos, panelas etc. –, na descrição das funções em que eram empregados – se de uso cotidiano, cerimonial etc. –, na identificação dos grafismos decorativos e na enumeração dos materiais e técnicas utilizados na confecção dos potes. Todas as informações levantadas também foram inseridas na base de dados on line, em português e em baniwa.



Guilherme, Damião, Aloisio dedicaram-se, com apoio de Andrea e Helene, a conhecer diferentes aspectos da coleção, concentrando-se sobretudo em alguns instrumentos e adornos rituais, como o pote de caapi, o escudo trançado, lanças-chocalho, porta-cigarros e os adornos usados nos dias de dança cerimonial. Guilherme nomeou matérias-primas empregadas, explicou técnicas de confecção, origens e como são usados pelos especialistas rituais. Ele distinguiu entre os instrumentos da gente do aparecimento (Umuko-masa ou Bahuari-masa), que são o banco tukano, o suporte de cuia, as cuias, o porta-cigarros; daqueles que surgiram na viagem de transformação da humanidade, que são os adornos de dança e os instrumentos jurupari da gente de transformação (Pamuri-masa).

Em uma das sessões conjuntas, Guilherme montou uma caixa de adornos pequena, mostrando o que é colocado primeiro, no fundo, e assim sucessivamente, como devem ser condicionados e guardados em camadas numa ordem determinada. Foi possível compor a caixa partir das peças que estavam nos armários do Museu, nem todas juntas até então. Ele ensinou o que deve estar na caixa de penas (mapoa ahkaro), e o que deve ser colocado em outros recipientes e cestos. A caixa de penas de arara (em sua tradução literal) é como o coração da maloca, é o principal patrimônio de um grupo de descendência, o que dá sentido a suas cerimônias.
Trajando um avental que lhe protegia dos venenos aplicados nos adornos para resistirem aos tempos de guerra, Guilherme se vestiu, da cabeça aos pés, com os adornos usados nos dias de dança, como um bayá.

Colaboração futura – o passado no presente

A visita e o trabalho conjunto em Berlin foram o início de uma colaboração e de planos para o futuro. Está sendo construído em Berlin o Humboldt Forum, um museu que o ocupará o palácio dos imperadores prussianos que está sendo reconstruído no centro da cidade e será constituído por exposições das diversas regiões do mundo, inclusive a Amazônia (veja aqui). Haverá espaço também para exibições temporárias e para pesquisas. Alguns temas desenvolvidos por pesquisadores indígenas atualmente no Rio Negro poderão ser foco de futuros trabalhos conjuntos, como a pesquisa sobre os ciclos anuais, o calendário ecológico-econômico e ritual, que integra a materialidade à visão cosmológica desses povos.

Embora as equipes do Brasil e Colômbia que estiveram em Berlin tenham perspectivas e prioridades próprias, é relevante também estreitar as relações em torno dessas coleções, na medida em que são povos da mesma família linguística e que já mantém relações e projetos colaborativos, que podem ser potencializados.

A estadia em Berlin terminou com a participação em um seminário de três dias – “Coisas vivas na Amazônia e no museu. Conhecimentos compartilhados no Humboldt Forum”.

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