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Confira o artigo do sócio fundador do ISA Márcio Santilli sobre a importância e a proteção legal das Terras Indígenas. O texto foi publicado originalmente no jornal Correio Braziliense, em 11/12/2018
A Constituição de 1988 dedicou um capítulo específico aos direitos dos índios, constituído pelos artigos 231 e 232. Vários outros dispositivos relativos a esses direitos constam de outros capítulos, a começar pelo inciso XI do artigo 20, que inclui entre os bens da União “as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”.
A Constituição reconhece aos índios “direitos originários” sobre seus territórios, na condição de primeiros habitantes do Brasil, ou seja, tais direitos precedem à criação do Estado Nacional. As Terras Indígenas (TIs) destinam-se à sua “posse permanente” e, por isso, são “inalienáveis”. Os direitos sobre elas são “imprescritíveis” e compete à União demarcá-las e protegê-las. O regime jurídico aplicado às TIs é especialíssimo: propriedade da União associada à posse permanente e ao usufruto exclusivo pelos índios.
Esse regime não é óbvio. Nos países que reconhecem direitos territoriais a populações autóctones, prevalece o regime de propriedade coletiva e inalienável da terra. Há países em que não há propriamente TI reconhecida, mas há povos que vivem em terras públicas, como parques nacionais. Há outros países em que se concede, mais do que o domínio, um “status” de autonomia administrativa no contexto da organização do Estado.
Qualquer que seja o regime aplicável, o fato é que, sempre que algum regime jurídico permitiu a venda dessas terras, o resultado histórico foi o desterro dos povos indígenas, com danos irreparáveis à sobrevivência física e cultural das gerações subsequentes, acirrando conflitos étnicos e sociais e dificultando sua solução. O exemplo mais flagrante é dos Guarani Kaiowá, a segunda maior população indígena do Brasil. Expropriados de suas terras, entre os séculos XIX e XX, vivem confinados em áreas diminutas no Mato Grosso do Sul, à beira de estradas e em acampamentos em condições sub-humanas.
Há quem considere mais avançadas as legislações que reconhecem aos índios a propriedade coletiva das terras. Mas também há quem suspeite que essa opção de considerá-las como bens da União tenha sido resultado de alguma influência “comunista” sobre a Constituinte. Pode ser o caso do presidente Jair Bolsonaro, que tem se declarado a favor de vender e arrendar TIs e quilombos.
Não se trata, porém, de opção ideológica. Na realidade, a Constituição de 1988 herdou orientações normativas dos regimes constitucionais que a precederam. Outorgada pela Ditadura Militar, a Constituição de 1967, no inciso IV do artigo 4.º, inclui entre os bens da União “as terras ocupadas por silvícolas”, também consideradas “inalienáveis”. Tal dispositivo foi mantido por emenda constitucional de 1969.
A inalienabilidade já estava presente nas cartas constitucionais de 1934, 1937 e 1946. São preceitos oriundos da jurisprudência e da experiência histórica que, em 1988, foram repostos através de uma emenda do senador Jarbas Passarinho, ministro de vários presidentes militares, sendo ele próprio um oficial da reserva, de orientação política de direita.
O regime jurídico desenvolvido no Brasil tem sido historicamente eficaz para garantir, mais e melhor do que se tem visto mundo afora, a proteção dos índios e a soberania do país ao mesmo tempo. Claro que podemos aprender e adotar proposições bem sucedidas de outros países. Graças à sua opção, no entanto, o Brasil desconhece reivindicações indígenas conflitantes com a sua organização federativa ou soberania nacional e a população indígena vem tendo os seus direitos reconhecidos, embora lentamente.
A proteção da União às TIs, sob o seu domínio, mesmo sujeita a descontinuidades e à falta de pessoal e orçamento, tem contribuído decisivamente para mantê-las íntegras do ponto de vista ambiental e aptas, tanto ou mais do que parques e reservas, a contribuir no enfrentamento das mudanças climáticas e na conservação da biodiversidade, com boas condições de vida e o desenvolvimento de projetos econômicos pelos próprios índios. A condição de bem jurídico da União facilita a atuação dos órgãos federais nessas terras, inclusive a presença militar na faixa de fronteira, ao contrário do que ocorreria caso fossem privatizadas ou sujeitas à ocupação desordenada.