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Por muito tempo, acreditamos que doenças que se transformavam em pandemias, confinamento, isolamento e taxas assustadoramente altas de mortalidade eram coisa do passado. A ciência, a tecnologia e a medicina, que tanto avançaram no século 20, nos protegeriam. As epidemias da Idade Média, como os surtos de peste bubônica (“peste negra”), a “gripe espanhola”, nada disso parecia combinar com a nossa reluzente modernidade.
Parece, porém, que é justamente a combinação dos elementos que constituem a modernidade que nos trouxe até este momento pandêmico. E, junto com ele, uma constatação da qual passamos o tempo todo fugindo: somos animais, parte da natureza, nossa sobrevivência depende dos processos naturais, em suma, somos vulneráveis. A compreensão de que a pandemia está ligada às formas com que nós lidamos com a natureza e a nossa incapacidade, ao que tudo indica, de transformar essas relações nos torna ainda mais vulneráveis. A multiplicidade de crises que enfrentamos no presente ajuda a colocar a vulnerabilidade, explicitada pela Covid-19, em segundo plano. Entretanto a confiança numa possível vacina e o desejo de voltar a vida “como era antes”, sem muita reflexão, dão uma medida do desconforto que essa vulnerabilidade causa.
A ideia de que os humanos, ou pelo menos a parte mais privilegiada deles, estão descolados dos processos naturais é bem visível na forma que a crise climática vem sendo tratada. Além dos céticos, que talvez devêssemos chamar de "pessoas em negação", muitos dos que se preocupam com a mudança do clima apostam em soluções tecnocientíficas, que permitirão que sigamos vivendo da mesma forma, emitindo milhões de toneladas de gases de efeito estufa para a atmosfera. Subjaz aí uma certeza de que há de se encontrar um jeito, com nossa ciência e a tecnologia…
No âmago desse processo, dessa convicção de que somos especiais, diferentes, melhores que os outros seres do planeta, reside o medo de se reconhecer animal, carne, sangue, suscetível a doenças, dependente do clima, da natureza, mortal e insignificante. A pandemia que tudo desorganiza também desorganiza as estratégias que usamos para despistar nossa animalidade. Talvez a disposição em ignorar milhares de mortos, UTIs lotadas e o fim de uma certa “normalidade” esteja relacionada com o desarranjo das estratégias mobilizadas para esquecer nossa condição animal.
Mas por que tanta insistência em esquecer, ocultar, sufocar nossa animalidade? Há, de fato, um aspecto mais evidente, a vulnerabilidade associada a ser animal. Ela nos afasta das máquinas, com quem temos cada vez mais intimidade, e agora na pandemia ainda mais, e nos obriga a encarar nossos vínculos com a natureza. Nesse sentido, é bastante significativo quantos de nós são entusiastas da ideia de transferir nossos cérebros, como sinônimos de nossas consciências, para outros artefatos que não nossos corpos, como propõem várias tecnologias, algumas, inclusive já adiantadas. Ou seja, uma percepção que somos apenas nossos cérebros e não corpos inteiros, em interação com um conjunto de milhões de outros seres vivos, tanto dentro de nós, os microorganismos que nos constituem, como fora, como organismos que interagem com outros, a partir de sentidos e sensações também. A possível imortalidade das máquinas produz inveja. A impossibilidade de infligir sofrimento aos seus corpos também.
Há, porém, outros aspectos da nossa animalidade que nos causam temor. Ao nos reconhecermos como animais, sem nosso especial status de humanos, nos tornamos passíveis de sermos mortos, descartados ou escravizados sem que haja alguma proteção legal. Muitos humanos, ao longo da história da nossa espécie, enfrentaram essa realidade e muitos ainda enfrentam.
Curiosamente, há também um movimento contrário, que tenta nos aproximar dos animais, tentando entender seus pontos de vista. Exemplos bem interessantes são de pessoas que vivem como animais por algum tempo, para se distanciarem do ponto de vista humano, como o homem que viveu como uma ovelha alguns dias ou o que já viveu como texugo, raposa e outros animais. Outros exemplos vêm de observações e pesquisas como o livro “Outras mentes”, que descreve o polvo, seus poderes cognitivos e sua interação com o meio.
Ainda assim, a pandemia do coronavírus parece nos mostrar que não estamos preparados para encarar a vulnerabilidade que nossa animalidade nos traz. Parece ser uma recusa ativa: os dias onde fugíamos de predadores, subindo em árvores ou nos escondendo em cavernas, têm que ter ficado para trás; tempos onde as pessoas morriam pelas ruas, vítimas de varíola, peste ou sarampo não dialogam com o presente; um futuro onde sejamos reféns do clima não condiz com nossa situação de seres especiais.
A pedagogia da pandemia revela-se atroz: o que ela nos levou a aprender sobre a nossa espécie convida os mais otimistas à reflexão e os mais pessimistas, ao desespero. As ideias de que o mundo tinha, contra todas as possibilidades, parado e que isso seria uma oportunidade para revisitarmos nossa forma de estar no mundo mostrou-se uma impossibilidade. Independente das críticas que boa parte das pessoas tinham da vida antes da pandemia, é para ela que todos parecem querer voltar. Todas as fichas foram colocadas na tecnociência e nada sobrou para pensar nas nossas relações com a natureza nem na constatação de que esse caminho nos levará, inevitavelmente, a novas pandemias e a um mundo imprevisível. Aqui, a aposta também parece ser a tecnociência: trocar a vulnerabilidade de um corpo animal pela constância das máquinas.
A pandemia nossa de cada dia veio para ficar. Os caminhos que a humanidade trilhará ainda são desconhecidos, mas sabemos que o presente é uma máquina de fazer futuros e o futuro que vem sendo talhado nesse presente que vivemos não é nada auspicioso. Talvez não devêssemos dizer que tivemos uma oportunidade de parar, refletir e mudar, pois quiçá essa possibilidade só tenha existido na cabeça de alguns sonhadores…