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Na última terça-feira (22), Bolsonaro discursou na abertura virtual da Assembleia Geral da ONU, a Organização das Nações Unidas. A prerrogativa desse pronunciamento inicial é uma honraria para o Brasil que, no entanto, Bolsonaro desonrou, recorrendo a mentiras primárias para minimizar a sua responsabilidade pela perda evitável pela Covid-19 de 140 mil vidas de brasileiros, assim como pelo fogaréu criminoso que consome as nossas florestas, potencializado pela inação do seu (des)governo.
Aos representantes de todos os países, Bolsonaro enalteceu, cinicamente, sua postura nefasta de negação da gravidade da pandemia e de boicote ao isolamento social, como se o Brasil não fosse um dos campeões mundiais de vítimas fatais da pandemia. Fez questão de incluir a produção desnecessária de cloroquina, comprovadamente ineficaz, entre as providências tomadas frente à crise de saúde.
Pior ainda foi Bolsonaro tentar naturalizar o aumento do desmatamento e das queimadas, que destroem a Amazônia, o Pantanal e outros biomas, atribuindo os gigantescos incêndios florestais aos índios e caboclos, ao mesmo tempo dizendo que eles não ocorrem na floresta, mas na sua “borda leste”, quase completamente desmatada. Ao insistir em afirmações levianas, Bolsonaro consolidou, de vez, o descrédito mundial de seu governo e o isolamento político do Brasil no cenário internacional. Seu negacionismo deixa claro, às avessas, que o descaso com a vida humana e selvagem vai continuar sendo a sua marca registrada.
Dias antes da abertura virtual da Assembleia, Bolsonaro visitou a região de Sinop (MT), grande produtora de soja. Ao aproximar-se do aeroporto da cidade, o avião presidencial precisou arremeter, por falta de visibilidade devido à densa nuvem de fumaça de queimadas que cobre o Estado. Foi só numa segunda tentativa que conseguiu pousar. Mesmo assim, ele não perdeu a oportunidade de fazer pouco caso do incidente e da tragédia ambiental que o envolve. “O Brasil está de parabéns com relação ao meio ambiente”, afirmou. Não percebeu que a sua postura insana pôs em evidência a relação orgânica entre a produção da soja e a devastação florestal.
Enquanto isso, o ministro da desinformação, general Augusto Heleno, acusava a Apib, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, de “crime de lesa pátria”, por causa do sucesso da campanha internacional “Defund Bolsonaro”, cuja mensagem chegou a mais de um bilhão de pessoas em todo mundo, que já o consideravam o grande predador planetário da atualidade. Para o general, não é o nosso Nero presidencial que lesa a pátria, mas quem denuncia as lesões causadas pelo estímulo persistente à grilagem de terras públicas, à invasão de áreas protegidas e à exploração ilegal e predatória de madeiras e de minérios.
Provavelmente, Bolsonaro quis se referir à “Defund Bolsonaro” quando disse, no discurso na ONU, que “o Brasil é vítima de uma das mais brutais campanhas de desinformação sobre a Amazônia e o Pantanal". Mas não foi a primeira vez que ele mentiu à comunidade internacional sobre a questão indígena. No ano passado, na sessão presencial de abertura da assembleia do organismo internaciona, Bolsonaro atribui-se o papel de contestar a figura do Raoni Mektutire no movimento indígena brasileiro e incluiu na sua comitiva a youtuber indígena Ysani Karapalo, apresentada como se fosse a grande liderança indígena do país. Ysani é indígena urbana, conhecida nas redes sociais, mas não representa povos ou comunidades. Bolsonaro a usou e, depois, a descartou. Agora, ela se diz decepcionada com o antigo ídolo.
Este ano, a programação oficial da Assembleia Geral inclui, além da reunião dos chefes de estado, um primeiro painel de “diálogo intergeracional”, promovido pelo “Youth Advisory Group on Climate Changes”, que assessora o secretário-geral da ONU. Nele, a deputada federal brasileira e indígenas Joênia Wapichana (Rede-RR) pôde contestar, ontem mesmo, as mentiras ditas na véspera por Bolsonaro, informando a comunidade internacional sobre a real situação vivida pelos povos indígenas no Brasil, sob um governo que não respeita os seus direitos constitucionais, o que os obrigou a recorrer ao Congresso Nacional e ao Supremo Tribunal Federal para retirar invasores das suas terras e se protegerem contra a Covid-19.
Bolsonaro sempre desprezou o meio ambiente, as florestas e os índios, e a Apib reage desde o início do seu desgoverno. A novidade, agora, é que a indignação com essa situação alcança os executivos de grandes corporações, os maiores bancos brasileiros e vários governos estrangeiros. A catástrofe socioambiental brasileira já inibe investimentos e afeta as negociações comerciais. As lesões ao solo pátrio já foram muito além do que desinformou o general Heleno, e é isto, na verdade, que explica a postura alarmista da cúpula do governo.
Há quem diga que esse nervosismo todo resulta de só agora ter caído a ficha, para o governo, de que a repercussão do desastre socioambiental no Brasil sobre a opinião pública e alguns parlamentos da Europa exigirá negociações adicionais para dotar o acordo comercial entre a União Européia e o Mercosul de garantias ambientais mais sólidas. No discurso na ONU, Bolsonaro disse que as críticas ao Brasil visam prejudicar as exportações de alimentos e que espera a rápida implementação do tratado que, no entanto, pode ter ficado ainda mais prejudicada.
Logo após o discurso, os ministérios da Agricultura e das Relações Exteriores divulgaram uma nota conjunta afirmando que “a não entrada em vigor do Acordo Mercosul-UE passaria mensagem negativa e estabeleceria claro desincentivo aos esforços do país para fortalecer ainda mais sua legislação ambiental. A não aprovação do acordo teria, ademais, implicações sociais e econômicas negativas, que poderiam agravar ainda mais os problemas ambientais da região.”
Na falta de resultados positivos na sua política ambiental apresentáveis à comunidade internacional, o governo inverte a lógica para dizer que pode retroceder ainda mais caso fracasse o acordo com a União Européia. Parece um ato falho, não? Mas é um reflexo dissimulado da posição já assumida por setores atrasados, mas hegemônicos no agronegócio, que se interessam mais pelos ganhos de escala com a desregulamentação, a grilagem e o desmatamento de novas áreas a serem incorporadas ao mercado de terras. Esse segmento entende que quaisquer restrições comerciais da Europa e de outros mercados mais exigentes serão compensadas com o aumento das exportações para a China e outros países.
Com efeito, as exportações de produtos agropecuários para a China têm crescido em 2020, apesar das tragédias sanitária e ambiental e das ofensas diplomáticas feitas ao governo chinês pelo chanceler e pelo filho do presidente. A China parece centrada no conflito comercial com os EUA e não tem interesse em abrir outras frentes. Com relação ao Brasil, engole isso tudo a seco para conquistar outros mercados, como o da internet 5G, e para comprar outros ativos baratos, dada a desvalorização do real, além dos produtos agropecuários.
Para não correrem o risco de alguma surpresa em sentido contrário, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, e os próceres do agronegócio devem fazer uma leitura atenta do discurso do presidente chinês, Xi Jinping, na mesma sessão de abertura da Assembleia Geral da ONU. Em contraste com a mediocridade do Bolsonaro, ele falou sobre quatro grandes eixos que, a seu ver, orientarão o futuro da humanidade, destacando a questão climática e da sustentabilidade ambiental entre eles. Jinping confirmou que a China está próxima de atingir o seu pico de emissões de gases do efeito estufa e a iniciar um processo consistente de redução das suas emissões, para além dos compromissos que assumiu no Acordo de Paris.
Nada garante que a cautelosa leniência atual do governo chinês no comércio com o Brasil se mantenha indefinidamente. Emissões irresponsáveis, oriundas de desmatamentos e queimadas, serão precificadas também pela China, ainda mais quando estiverem anulando os efeitos climáticos da redução das suas emissões. A delinquência socioambiental poderá se tornar um mau negócio, até para o agronegócio e até para os formidáveis negócios com a China.