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Nos termos do artigo 131 da Constituição, “a Advocacia-Geral da União é a instituição que (…) representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe (…) as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo”. Os atos jurídicos e administrativos praticados pelo presidente da República, seus ministros e demais dirigentes da administração pública federal são orientados pela AGU. Sua função é institucional, de defesa do Estado.
Não cabe à AGU defender interesses pessoais de dirigentes públicos e, muito menos, os seus atos e manifestações políticas. Porém o presidente Jair Bolsonaro tem feito uso pessoal e político da AGU com frequência.
Num dos seus passeios de fim de semana pelo Distrito Federal, Bolsonaro promoveu aglomerações e, sem usar máscara ou adotar qualquer cautela, abraçou pessoas, inclusive crianças, e blasfemou contra medidas de isolamento social adotadas por governadores e prefeitos. Questionado em juízo, acionou a AGU para se defender, alegando o “direito de ir e vir”.
Com esse mesmo argumento, a AGU tem recorrido de multas aplicadas ao presidente por autoridades sanitárias estaduais. No fim de semana, Bolsonaro visitou Eldorado, cidade paulista do Vale do Ribeira, para visitar sua mãe. Aproveitou para fazer campanha, promovendo aglomerações. Recebeu sua quarta multa.
Na semana passada, a pretexto da pandemia, o advogado-Geral da União, Bruno Bianco Leal, requereu do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso a proibição do Acampamento Luta pela Vida (ALV), manifestação liderada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que acontece, nesta semana, em Brasília, em defesa dos direitos indígenas. Barroso relata uma ação movida pela Apib para obrigar a União a formular e executar um plano específico de proteção dos povos indígenas contra o vírus. Além da sofrível atuação do governo no tema, Leal quer usar essa ação para tentar impedir a mobilização.
Na sua petição, Leal alegou que “tendo em vista a manifestação indígena agendada para os dias 22 a 28 de agosto de 2021 no Distrito Federal, o Advogado-Geral da União requer a Vossa Excelência, com toda a deferência de estilo, que delibere sobre a possibilidade de determinar à arguente que adie a manifestação planejada para uma data futura e mais prudente”. Uma prudência que não ocorreu a Leal nas inúmeras manifestações públicas promovidas por Bolsonaro.
Há quem diga que os advogados não têm dever de coerência com o que dizem e que o seu compromisso é com a defesa do cliente. Mas, honestidade intelectual não faz mal a ninguém e, nesse caso, o advogado ficou aquém: não foi geral, nem da União; dedicou lealdade à atuação política pessoal do presidente.
Delegações indígenas de todas as regiões do país se reúnem no Acampamento Luta pela Vida. A completa imunização condicionou a composição das delegações. Todos são testados na chegada ao acampamento, usam máscaras nos deslocamentos, reuniões e manifestações, que também respeitam regras de distanciamento. Doações de água mineral, álcool gel e outros insumos ajudam a evitar contaminações. Nenhuma dessas providências tem sido adotadas nas manifestações presidenciais, mas o AGU não agiu.
Além disso, a mobilização dos índios tem o respaldo dos direitos fundamentais garantidos pelo artigo 5º da Constituição e o objetivo de fazer o governo respeitar os direitos indígenas inscritos no artigo 231, que também estão em jogo no STF e no Congresso. O acampamento é legal e legítimo.
O tradicional Acampamento Terra Livre acontece todo ano em abril. Durante a pandemia, ocorreu de forma virtual. Assim como o Levante pela Terra, outra mobilização espontânea iniciada em junho, o Acampamento Luta pela Vida reage a situações impostas por interesses opostos. Ruralistas e empresas minerais predatórias querem impedir as demarcações ainda pendentes e se apropriar do usufruto das Terras Indígenas demarcadas e de seus recursos naturais. Enquanto o governo promove a multiplicação das invasões dessas áreas e a cooptação de lideranças indígenas, esses interesses movem ações no STF para restringir o direito à terra e também movem projetos de lei no Congresso que pretendem igualmente usurpar o direito de usufruto dos índios sobre os seus recursos.
A petição de Leal ao STF é de duvidosa eficácia judicial e revela, por tabela, o temor do seu cliente ao vigor do movimento indígena. Resta ao advogado-geral um álibi venal: os desvios na AGU não diferem dos que ocorrem, sob Bolsonaro, na Polícia Federal e na Procuradoria-Geral da República.