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Anistia premia ilegalidade e pode trazer mais desmatamento

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Raul Silva Telles do Valle

O ano não está para peixe. Nem para árvores ou para água. Se depender da bancada ruralista do Congresso Nacional, a meta anunciada pelo Ministério do Meio Ambiente de diminuir o desmatamento na Amazônia em até 80% até 2020 não será atingida nunca. Isso porque os ruralistas, em um esforço concentrado de final de ano, se articulam para aprovar projetos de lei que, no mínimo, revogam o Código Florestal e, se tudo der certo (para eles), o núcleo central da legislação ambiental.

Há cerca de um mês foi formada comissão especial, na Câmara dos Deputados, para analisar projetos de modificação do Código Florestal. Só que um deles, de autoria do deputado Valdir Colatto (PMDB/SC), visa modificar profundamente também a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, a Lei de Crimes Ambientais e a Lei do Sistema Nacional de Unidade de Conservação, dentre outras. Ou seja, tudo que foi construído nos últimos vinte anos em prol de uma melhor gestão ambiental no País, razão pela qual diversas organizações da sociedade civil lançaram uma nota de repúdio a essa tentativa (veja aqui).

Paralelamente, no entanto, os deputados ruralistas, com apoio explícito do Ministério da Agricultura e da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), conseguiram, em manobras de bastidor, ressuscitar um projeto que estava parado há anos na Comissão de Meio Ambiente e que modifica apenas o Código Florestal. Esse projeto, que quase foi votado há dois anos na Comissão de Meio Ambiente da Câmara dos Deputados, fruto de um efêmero acordo entre ambientalistas e ruralistas com o então relator, deputado Jorge Khoury (DEM/BA), acabou sendo desviado para a Comissão de Agricultura, onde foi totalmente modificado para atender à sanha dos ruralistas. Agora os ruralistas articularam a deposição do relator originalmente designado para opinar sobre a matéria e colocaram um homem de sua confiança, Marcos Montes (DEM/MG), para fazer o serviço. E ele fez.

Pelo relatório apresentado pelo deputado, e que quase foi aprovado na sessão da última quarta-feira (28/10), todas as demandas da parte mais atrasada do agronegócio brasileiro estavam incluídas. Pela proposta, todos que até 2006 ocuparam com produção agropecuária – pode ser um pasto abandonado, não importa – áreas que deveriam ser protegidas (APPs) estão isentos de recuperá-las. Com isso, milhões de hectares de áreas ambientalmente sensíveis – sujeitas a erosão ou deslizamentos, por exemplo – estarão condenadas a se degradarem até a exaustão, como já ocorreu em diversos pontos do País em processo de desertificação.

Outro ponto “interessante” do projeto é que ele não diminui explicitamente o tamanho da reserva legal, mas permite que a recuperação seja feita com 50% de espécies exóticas, o que, na prática, significa diminuir pela metade essas áreas, já que espécies exóticas não cumprem com a função de proteção e reprodução da biodiversidade, objeto central das reservas legais. Além disso, quem não quiser recuperar pode compensar a área devida em qualquer lugar do País. Assim, por exemplo, uma fazenda da região de Campinas (SP), onde hoje há problemas de produção de água pelo excessivo desmatamento e impermeabilização do solo, poderia compensar sua reserva legal no Amapá, o que não só impediria o controle sobre a conservação da área compensada como também impediria que se possa recuperar um mínimo do equilíbrio ambiental da região de origem.

A Confederação Nacional da Agricultura vem defendendo publicamente a aprovação desse projeto, elaborado dentro de seus escritórios. Diz que ele “moderniza” o Código Florestal, ao anistiar ilegalidades passadas em troca de um “maior rigor” daqui pra frente. O primeiro artigo do projeto diz que daqui em diante é proibido desmatar florestas no País. Mais pra frente deixa claro que o cerrado, a caatinga e o Pantanal não entram nessa proibição. E que todo proprietário que tiver áreas de florestas em seus imóveis terão automaticamente direito a ganhar um “bolsa-floresta” do governo, baseado no valor da produção agropecuária que poderia ser teoricamente feita na área. Assim, por exemplo, o grileiro que ocupou na mão grande 1.500 hectares de terras públicas na Amazônia e conseguir regularizá-las por meio do programa Terra Legal, do Governo Federal, vai ter direito a receber da sociedade o equivalente ao que ganharia com a produção agropecuária nessas terras, mas sem precisar ter dor de cabeça com a saúde do gado, com os preços do mercado, com o transporte de sua produção, com o pagamento de empregados nem nada disso. Nada. Vai precisar apenas desfrutar de sua renda verde, quase que uma aposentadoria, como prêmio por estar “cuidando” de uma área que até cinco anos atrás – ou menos – era pública. E se quiser fazer uma viagem à Europa por ano pelos próximos dez anos, ainda pode fazer “vista grossas” à retirada de madeira dessa área e ganhar um “extra”.

Um dos hits no discurso ambiental ruralista é que o Código Florestal carece de “fundamentação científica” para determinar o que deve ou não ser preservado. Dizem que a proteção das matas ciliares deve ser feita no detalhe, caso a caso, de acordo com complexas variáveis naturais e econômicas. Por isso, o projeto joga para os estados o poder de definir o tamanho das áreas de preservação permanente ao longo dos rios, pois é lá que a “ciência” é produzida. O interessante de notar é que no único estado onde essa tese foi aplicada – Santa Catarina, que aprovou um código ambiental estadual – a “ciência” apontou que em todos os rios, de todos os tamanhos, que cortam regiões com todos os tipos de solo e de ocupação humana, a faixa de florestas a ser preservada é de cinco metros, enquanto a legislação nacional dita no mínimo trinta. É incrivelmente homogêneo o Estado, não?

O mais intrigante é que esse projeto é ressuscitado no exato momento em que é criada, a pedido dos próprios ruralistas, uma comissão especial só para discutir propostas de modificação no Código Florestal. Ou seja, os ruralistas estão claramente em dois – ou mais – barcos, e pularão naquele que chegar antes do destino. Só não se sabe se avisaram o deputado Aldo Rebelo (PC do B/SP), que foi nomeado relator da comissão especial e planejava fazer uma ampla consulta à sociedade sobre o assunto.

Pelo andar da carruagem, se o Governo Lula não entrar em campo e tomar uma posição firme para evitar que o PL 6424 seja aprovado, Aldo será um mero figurante, pois o assunto será decidido em outro espaço. O problema é que o Governo está totalmente omisso, tirando as tentativas pontuais do MMA em apagar os incêndios. A própria composição da comissão especial, dominada por ruralistas, é sintomática desse desprezo pelo assunto. Mas isso pode custar caro ao Presidente. Se ele estiver planejando voltar a Copenhague em dezembro, agora não mais para aplaudir a indicação do Rio para as Olimpíadas, mas para decidir o futuro do clima da Terra, corre o risco de levar na bagagem papéis sem conteúdo, pois a única meta até agora adotada pelo governo brasileiro, a de diminuição do desmatamento, será pura ficção. Ruim para o mundo, pior para o Brasil.

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