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Lobby no Congresso quer restringir o direito de agricultores guardarem sementes

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Fernando Mathias

Audiência publica na Câmara Federal pressiona por endurecimento da lei de cultivares ao apresentar propostas de mudanças na legislação que ampliariam o escopo da propriedade intelectual do detentor da cultivar, sufocando o agricultor e limitando seu direito de guardar sementes.

“Semente é chip”; a comparação traduz o espírito da audiência publica “Sobrevivência e Sustentabilidade do Agronegócio Brasileiro”, realizada nesta terça-feira, 7 de agosto, na Comissão de Agricultura da Câmara. Convocada pelo deputado Moacir Micheletto, a audiência contou com a participação de representantes do Ministério de Agricultura (MAPA), Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), Embrapa, Confederação Nacional da Agricultura (CNA), Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB) e Associação Brasileira de Sementes e Mudas (Abrasem).

Os ruralistas buscaram mostrar que o agronegócio brasileiro encontra-se ameaçado em sua estrutura, pelo enfraquecimento da cadeia de pesquisa e desenvolvimento (P&D) em sementes agrícolas. Dados mostraram que a taxa de uso de sementes registradas no Brasil vem decaindo para as principais commodities agrícolas. Isso estaria causando uma quebra na cadeia de P&D na medida em que os investimentos em novas pesquisas dependem dos royalties arrecadados pelo uso de sementes registradas. Em médio prazo isso comprometeria a competitividade do Brasil no exterior, tanto em desenvolvimento de tecnologia como em exportação de grãos.

Estrutura do setor depende da iniciativa privada

Hoje o setor de desenvolvimento de novas cultivares depende largamente dos aportes da iniciativa privada. A Embrapa vem priorizando o desenvolvimento e licenciamento de cultivares em sistema de parcerias públicas e privadas, pelo qual obtém as cultivares e mantém estoques iniciais de sementes genéticas e básicas para posterior aperfeiçoamento por fundações privadas conveniadas. Todo esse sistema depende do controle sobre o uso das cultivares pelos agricultores, que deve gerar royalties suficientes para manter essa rede de instituições privadas. Diante disso, o discurso predominante na audiência foi o da necessidade de enxergar a semente não como grão ou reserva pessoal, mas como um “chip” que contém anos de pesquisa embutidos e que deve, portanto, ser remunerado.

Pirataria de sementes

Uma das causas levantadas pelos participantes para esse cenário é a chamada “pirataria” de sementes, prática de reprodução e venda de sementes a partir de uma semente certificada, sem autorização do detentor da cultivar. Exemplo disso foi é o caso da soja transgênica da Monsanto. A invasão de sementes “Maradona” e “Carlitos Tevez” de soja Roundup Ready e a política do governo de sucessivamente liberar a comercialização e o plantio de novas safras causaram impacto sobre programas de melhoramento como o da Embrapa Soja e suas fundações privadas conveniadas. Os dados apresentados mostraram que boa parte das sementes “piratas” é vendida por grandes agricultores.

Uso próprio de sementes pelo agricultor também é considerado “ameaça”

Outra “ameaça” levantada pelos participantes da audiência foi a prática de guardar sementes para plantio na próxima safra. Salvar sementes para plantar no ano seguinte é uma prática tão antiga quanto a própria agricultura e permitida pela lei de cultivares. No entanto, os participantes tentaram mostrar que o uso próprio é um mau “hábito cultural” do agricultor, que deve ser reeducado para passar a usar sementes registradas.

Representantes do MAPA e da Abrasem buscaram persuadir o público que guardar sementes seria um mau negócio, pois equivaleria a um “investimento parado”. Como novas sementes melhoradas estariam teoricamente sempre disponíveis no mercado, o agricultor que guarda suas sementes para replantio acabaria ficando obsoleto e perderia em produtividade.

O representante da Abrasem chegou a comparar o agricultor que salva sementes com o paciente que se automedica: ambos seriam “clientes” de um sistema de P&D biotecnológico que dependeria dos royalties que estão embutidos na semente ou no medicamento, e o uso não controlado destes seria irresponsável e perigoso. O representante do Departamento de Propriedade Intelectual e Tecnologia da Agropecuária do MAPA criticou o uso próprio de sementes por grandes agricultores, afirmando achar inadequado que alguém guarde qualquer volume de semente para plantio próprio, independente do tamanho da área e do nível tecnológico empregado. No entanto, essas críticas são o primeiro passo para um perigoso endurecimento do sistema de propriedade intelectual no campo da agricultura.

Propostas sufocariam pequenos agricultores familiares

Junto com as críticas vieram propostas para mudar o atual cenário. Condicionar a concessão de crédito e seguro agrícola à comprovação do uso de sementes certificadas, aumentar a fiscalização do MAPA sobre propriedades rurais, alterar a legislação de cultivares para eliminar o direito do agricultor de salvar sementes, foram as principais propostas apresentadas pelos participantes. No entanto, tais propostas podem gerar impactos severos sobre agricultores que dependem de suas próprias sementes para manter sua produção agrícola, e que não necessariamente estão preocupados em manter competitividade no mercado de commodities agrícolas.

Para a agricultura familiar, isso significaria praticamente o desmantelamento de todo o sistema de crédito agrícola, na medida em que agricultores teriam acesso negado ao crédito, por não usarem – nem pretenderem usar – sementes registradas. A proibição de uso próprio significaria a criminalização de praticamente toda a agricultura familiar e parte da agricultura de grande porte no país, com o intuito de salvar os lucros das fundações privadas de P&D biotecnológico e as indústrias sementeiras. A criminalização do uso próprio e a intensificação da fiscalização forçariam agricultores a usar sementes registradas, mesmo contra a sua vontade, causando uma relação de dependência e sufocando a capacidade de produção própria.

Mudanças correspondem à adesão do Brasil à UPOV 91

Por trás dessas propostas existe um jogo diplomático internacional mais amplo. Desde a aprovação em 1994 do acordo TRIPS/OMC sobre propriedade intelectual e comércio, foi aberta a possibilidade de ser criado um sistema sui generis para proteção de plantas análogo ao sistema de patentes. Esse sistema sui generis hoje é regido pela Convenção da União para Proteção das Obtenções Vegetais (UPOV), que sofreu algumas alterações, as mais importantes em 1978 e 1991.

A atual lei de cultivares foi baseada nos princípios da Convenção UPOV de 1978, à qual o Brasil aderiu em 1999. A UPOV-78 preserva o direito de o agricultor salvar sementes protegidas para uso próprio, e esse direito se encontra garantido na atual lei. A UPOV-91 deixa a critério do País resolver se permite ou não o uso próprio de sementes. E, caso permita, deve “resguardar os interesses legítimos do melhorista”. Ou seja, o agricultor, neste caso, poderá ter que pagar royalties também sobre a semente guardada. A UPOV-91 endurece ainda mais a propriedade intelectual sobre os cultivares, estendendo-a também aos produtos agrícolas obtidos a partir das sementes protegidas, e também sobre seus derivados. As propostas apresentadas na audiência caminham no sentido de alinhar a legislação brasileira à normativa mais radical da UPOV, para ampliar o escopo da propriedade intelectual do detentor da cultivar, sufocando o agricultor e limitando seu direito a guardar sementes.

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