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Nesta sexta-feira, dia 23 de abril de 2010, o ministro Gilmar Mendes deixa a presidência do STF e um pesado legado aos povos indígenas do Brasil. Como presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) nos últimos dois anos, o ministro Mendes proferiu monocraticamente pelo menos oito decisões liminares que ameaçam a segurança jurídica de Terras Indígenas (TIs) no país. Só durante as últimas férias forenses entre 24 de dezembro e 29 de janeiro, na ausência de seus colegas, o presidente do STF concedeu quatro liminares, inclusive em mandados de segurança (MS 28574-DF, MS 28567-DF, MS 28541-DF e AC 2556-MS) para suspender os efeitos de decretos presidenciais de homologação e de portaria do Ministério da Justiça que declara no Mato Grosso do Sul e em Roraima.
O ministro Gilmar Mendes sai da presidência do STF, mas as liminares ficam. E com elas também fica a insegurança jurídica sobre TIs declaradas e homologadas.
Desde o caso Krenak (1996), apenas o caso Raposa-Serra do Sol (2008) foi apreciado no mérito da discussão sobre direitos indígenas para além de questões processuais pelo STF. Tanto que, em março de 2010, o tribunal rejeitou o pedido de súmula vinculante PSV 49 de autoria da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). A entidade de classe solicitava que não fosse considerado como terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as terras de aldeamento extintos antes de 5 de outubro de 1988, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto.
A Comissão de Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu em sua manifestação pelo arquivamento que não há suficientes decisões reiteradas do tribunal sobre o tema da demarcação para justificar a edição de uma súmula vinculante.
Apesar de decisões de mérito sobre a demarcação de Terras Indígenas (TIs) serem raras no STF, decisões liminares foram concedidas pelo ministro Gilmar Mendes mediante inúmeras irregularidades e contrasensos. Por exemplo, as últimas quatro liminares de Mendes enquanto presidente foram concedidas sem ouvir previamente a Funai e a União, com base em argumentos jurídicos fracos e numa clara tentativa de impor uma interpretação não consolidada sobre o alcance da decisão do STF no caso Raposa-Serra do Sol.
Na prática, ficam os povos indígenas submetidos a uma situação de maior vulnerabilidade e insegurança jurídica quanto à proteção de suas terras demarcadas. Ganham os autores com as concessões de tais liminares, simplesmente por seu caráter protelatório. Dados os argumentos formais e materiais, é de se esperar que os pedidos antecipados não sejam confirmados ao final da ação. Só não se sabe quanto tempo levará o STF para analisar essas ações pendentes.
Improbabilidade do resultado
Decisões de mérito do STF em casos de demarcação de TIs são contrárias aos argumentos apresentados pelo ministro Gilmar Mendes como presidente do tribunal, para fundamentar as liminares concedidas. Isso se reflete especialmente no caso de liminares em mandados de segurança que contestam a demarcação de TIs porque a jurisprudência do STF entende que o mandado de segurança não é via adequada para discutir se uma área é ou não TI. Ou seja, o STF terminará por julgar improcedente essas ações que são contempladas por liminares, porque entende que a comprovação da ocupação tradicional indígena de terras exige matéria de fato a ser discutida e provada em ação própria. Inexistente seria portanto o fumus boni iuris do pedido liminar nos mandados de segurança desse tipo.
De acordo com o STF, o registro de título aquisitivo de propriedade não comprova direito líquido e certo individual sobre áreas reconhecidas como . É que a simples existência de um título não afasta a posse indígena. Assim, em ação própria declaratória ou ordinária deve ser feita perícia antropológica para instruir o magistrado acerca da ocupação indígena tal como define a Constituição Federal em seu artigo 231. Consequentemente, não seria possível que, por mandado de segurança, aquele que simplesmente apresenta títulos alcance a anulação dos atos administrativos que reconhecem . (STF - MS 20.723/DF, Rel. Min. Djalci Falcão).
O fundamento das medidas liminares do ministro Gilmar Mendes
Ainda assim, enquanto presidente do STF, Gilmar Mendes apresenta quatro argumentos padronizados para justificar a concessão das liminares nos diferentes casos:
a) plausibilidade da violação do direito ao devido processo, à ampla defesa e ao contraditório dos ocupantes não-indígenas;
b) existência de registros de imóveis anteriores à data de 5 de outubro de 1988 e a chamada jurisprudência do STF no caso Raposa-Serra do Sol e, consequentemente;
c) justificativa do periculum in mora com base no fato alegado de que, a qualquer momento, a União poderia proceder ao registro no cartório imobiliário das homologadas, culminando na transferência definitiva da propriedade para a União; e
d) justificativa do periculum in mora com base no alegado perigo de novas invasões das terras por parte dos indígenas.
As decisões liminares produzidas em série e a toque de caixa pelo presidente ministro Gilmar Mendes não apresentam fundamentação jurídica adequada, conforme pode-se constatar a seguir. Mesmo assim, produzem efeitos nos casos concretos porque tendem a perdurar no tempo em prejuízo dos povos indígenas. Mas, acima de tudo, essas liminares retratam a tentativa do ministro Gilmar Mendes de consolidar um entendimento quanto ao conteúdo e ao alcance de algumas das condicionantes, resultado do julgamento do STF no caso Raposa-Serra do Sol.
A jurisprudência do STF sobre o Direito Originário dos Povos Indígenas
O que se tem como jurisprudência do STF - em análise de mérito dos poucos casos que enfrentou para além das questões processuais e no julgamento do caso Raposa-Serra do Sol é o reconhecimento do direito dos povos indígenas sobre suas terras tradicionais. A Suprema Corte do país já reafirmou o caráter originário do direito dos povos indígenas sobre suas terras tradicionais e entende que tal direito coletivo se sobrepõe, inclusive, à expedição de títulos de propriedade de particulares. (STF Pet. N.1.208-9/MS, Min. Rel. Celso de Mello).
Não há decisão de mérito do STF que desconheça o direito originário dos povos indígenas às suas terras tradicionais. Mesmo no citado caso da Raposa-Serra do Sol, não está claro que a interpretação do chamado marco temporal negue o caráter de direito originário esse que os povos exercem sobre suas terras.
O caso da Raposa-Serra do Sol
Em resumo, o julgamento do caso da TI Raposa-Serra do Sol reconhece o direito dos povos indígenas sobre seus territórios tradicionais como manda o artigo 231 da Constituição Federal de 1988; afasta a possibilidade da demarcação de TIs em ilhas; declara a nulidade de títulos sobre áreas insertas dentro dos limites da Terra Indígena em questão; e ressalta a especial proteção constitucional das TIs nos casos em que os índios não ocupavam suas áreas tradicionais à época da promulgação da Constituição de 1988 por causa de esbulho provocado por terceiros.
O acórdão do caso Raposa-Serra do Sol não é súmula vinculante e nem define que as TIs serão reconhecidas e demarcadas apenas se comprovada a ocupação física dos indígenas na data da promulgação da Constituição. O escopo da Constituição Federal, como bem salientado no Voto do Relator no caso Raposa-Serra do Sol, é buscar a justiça histórica com relação aos atos que foram perpetrados em anos anteriores. Reconhece-se em Raposa-Serra do Sol que a demarcação de TIs se insere no contexto de uma era constitucional compensatória de desvantagens historicamente acumuladas para que os índios possam desfrutar de um espaço fundiário que lhes assegure meios dignos de subsistência econômica para mais eficazmente poderem preservar sua identidade somática, lingüística e cultural."
Lembrando que, no caso Raposa-Serra do Sol, os diversos ministros do STF apresentaram posicionamentos muitas vezes conflitantes, mas que se condensaram num arranjo jurídico para atender ao contexto político em que se inseria o caso. Assim, as 19 condicionantes ali postas não são entendimentos consolidados e não se aplicam genericamente a quaisquer casos que versem sobre demarcações de TIs. Nesse sentido, em abril de 2009, o ministro do STF Carlos Ayres Britto julgou improcedente a Reclamação 8070, em que os fazendeiros alegavam que a revisão dos limites da TI Wawi (MT) pela Funai contrariavam a decisão proferida pelo STF no caso Raposa-Serra do Sol. Ao decidir pela improcedência de tal Reclamação, o ministro Carlos Ayres Britto pontua que há dúvida quanto ao próprio cabimento desta reclamação, uma vez que a ação popular não é meio processual de controle abstrato de normas, nem se iguala a uma súmula vinculante.
Sobre o marco temporal
Portanto, o acórdão do caso Raposa-Serra do Sol se refere ao chamado marco temporal da ocupação das Terras Indígenas a data de 05 de outubro de 1988 para depois reafirmar o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. A referência ao marco temporal pelo STF não afasta o caráter originário dos direitos dos povos indígenas sobre suas terras tradicionais. Não descarta a necessidade e o peso da identificação e do estudo antropológico de áreas indígenas em outros casos por causa da mera apresentação de documentos de titularidade mais antigos que a Constituição Federal.
O que se tem no acórdão da Raposa-Serra do Sol é o esclarecimento de como era a ocupação indígena, à época da promulgação da Constituição de 1988, para a confirmação do reconhecimento via demarcação, precedida de estudos antropológicos - da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol. Ou seja, não é a presença ou ausência do povos indígenas sobre suas terras na data de 05 de outubro de 1988 que determinará se a terra é indígena ou não e, sim, a sua importância para a reprodução física e cultural e a manutenção dos laços tradicionais com aquelas determinadas áreas. Em verdade, o acórdão do caso Raposa-Serra do Sol ressalta que se em 05 de outubro de 1988 a área em discussão não era ocupada por indígenas em razão de esbulho por parte de terceiros, aos povos indígenas fica assegurada a proteção constitucional sobre suas terras.
O devido processo e a ampla defesa
A alegada falta de oportunidade para os autores se manifestarem previamente aos atos de demarcação e homologação também foi utilizada pelo ministro Gilmar Mendes como fundamento para a concessão de suas últimas liminares enquanto Presidente do STF. No entanto, de acordo com o princípio do contraditório instituído pelo Decreto nº 1.775, as entidades federadas, os municípios sobrepostos à área indígena e/ou os particulares que se sintam afetados pelo processo demarcatório, podem manifestar-se a respeito do mesmo, a fim de pedir indenizações ou demonstrar vícios no relatório que identifica a posse ancestral. Estas manifestações podem ser feitas, em qualquer tempo, desde o inicio do procedimento demarcatório (baixa de portaria) até 90 dias após a publicação do relatório pela Funai.
Portanto, o que deveria ser verificado pelo STF - antes da concessão das liminares em questão - é se houve ou não oportunidade para que os autores se manifestassem, ainda antes da Portaria Ministerial que declara as áreas como. A existência de uma contestação administrativa dos autores como houve por exemplo no caso da TI Cachoeirinha (MS) com liminar concedida em janeiro de 2010 - ou mesmo de terceiros em situação semelhante em razão da demarcação da mesma terra indígena afastaria de cara a alegada violação aos princípios constitucionais do devido processo legal, contraditório e ampla defesa. O STF também já decidiu pela necessidade de ouvir a Funai e a União antes da concessão de liminares que versem sobre direitos indígenas, de acordo com o estabelecido no Artigo 63 da Lei 6001/73.
Outro argumento mencionado nas concessões das liminares é o de que as TIs em questão estariam sub judice e por isso não poderiam ser administrativamente demarcadas ou homologadas. Aqui estaríamos diante de um argumento de violação do devido processo legal no que diz respeito ao princípio da inafastabilidade do controle judicial em relação aos particulares que ocupam TIs em processo de demarcação. No entanto, a pendência judicial no âmbito da Justiça Federal, chamada de demarcação sub judice tem sido debatida e entendida pelos ministros do STF como incapaz de paralisar o procedimento administrativo de demarcação de TIs. (STF Pet. N.1.208-9/MS, Min. Rel. Celso de Mello).
Triste Semelhança com o caso TI Ñande ru marangatu
A única decisão semelhante do STF que suspende um decreto presidencial de homologação de TI é a liminar concedida no caso da TI Ñande ru marangatu, no Mato Grosso do Sul. Contudo, por se tratar de decisão liminar não constitui jurisprudência, e o que se conclui do desenrolar dessa ação é a possibilidade de ameaça jurídica da demarcação de TIs no país, que não se deveria querer na mais alta corte.
Por decisão também liminar do então presidente do STF, Nelson Jobim, em 2005, o STF suspendeu o decreto presidencial de homologação da terra indígena. O principal argumento usado pelo Ministro Jobim contra a demarcação da TI Ñande ru marangatu também era um precedente frágil: a liminar do STF, no caso da TI Jacaré de São Domingos, na Paraíba. (MS 21.869-PB, Relator Min. Joaquim Barbosa). Em 2007, a liminar concedida no caso Jacaré de São Domingos foi revogada, apesar da liminar de 2005 continuar em vigor até hoje. Em Ñande ru marangatu, a decisão liminar resultou na expulsão de cerca de 700 pessoas indígenas, a maioria mulheres e crianças, que ficaram por mais de um ano acampadas na beira da estrada. Uma liderança foi morta. O caso ainda aguarda decisão de mérito. STF Med. Caut. em MS 25.463-7
O curioso é que no citado precedente de Jacaré de São Domingos, na análise do mérito em 2007, a maioria dos ministros do STF, concluiu pela impossibilidade de ação judicial em curso paralisar o procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas. A exceção seria apenas no caso de subsistir decisão judicial ou medida liminar com finalidade específica de suspender o procedimento administrativo. Afirmaram que há presunção de legitimidade e auto-executoriedade sobre os atos administrativos. Isso significa que, a União independe de autorização judicial para cumprir com sua missão constitucional, como no caso da demarcação das TIs. Portanto, concluiu o STF que o prosseguimento da demarcação administrativa de TIs não impede que questões de direito sejam discutidas pelas vias judiciais adequadas e assim não viola o direito ao contraditório e à ampla defesa.
Nesse sentido, o próprio ministro Gilmar Mendes (que hoje apresenta fundamento de concessão de medida liminar relacionado ao fato das demarcações estarem sub judice) pontuou com clareza sobre a compatibilidade entre a demarcação e homologação das TIs e eventuais pendências judiciais, comparando a jurisprudência da casa nos casos de procedimentos administrativos de desapropriação para reforma agrária.
Conclusão
Ao deixar a presidência do STF, o ministro Gilmar Mendes também deixa pelo menos quatro liminares que são incongruentes com as decisões de mérito já proferidas pelo STF sobre a demarcação de TIs no país. Se não reformadas por seus respectivos ministros relatores ou pelo pleno em julgamento, essas medidas se caracterizarão como protelatórias e violadoras de direitos indígenas consagrados na CF e na jurisprudência desta Corte.
A morosidade do Judiciário para decisões de mérito em casos de TIs, e a concessão de liminares expedidas monocraticamente pelo STF aumentam a insegurança jurídica acerca da ocupação e proteção territorial do país. As dúvidas que pairam sobre a titularidade das TIs, não beneficiam nem aos índios nem àqueles que, de boa-fé, querem fazer uso do que lhe é de direito. Além disso, tal posicionamento da presidência do STF ignora a justificativa da corte para tomar para si os problemas que não são resolvidos nos âmbitos do Poder Executivo e do Poder Legislativo. Erra duas vezes: ao continuar adiando a resolução de conflitos indígenas; e ao falhar com a sua própria missão de proferir a justiça de forma definitiva.
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