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O parágrafo 6º do artigo 231 da Constituição Federal estabelece que:
"§ 6º - São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé."
Ou seja, para estabelecer quais são as situações excepcionais que podem restringir o direito de usufruto exclusivo dos indígenas sobre suas terras, o Congresso Nacional tem de estabelecer uma lei que complementa a Constituição. Essa lei deve dizer o que é de relevante, importante, para o interesse público da União, ou seja, para o Estado Nacional.
Em uma primeira tentativa de regulamentar esse dispositivo, o projeto de lei complementar 260, de 1990, estabelecia, por exemplo, como situações de relevante interesse público da União, para os fins previstos no § 6º do art. 231 da Constituição Federal: a) perigo iminente de agressão externa; b) ameaça de grave e iminente catástrofe ou epidemia; c) necessidade de exploração de riquezas naturais imprescindíveis à soberania ou ao desenvolvimento nacional.
Tal projeto de lei não teve sucesso, e até hoje está em aberto a definição do que é relevante interesse público da União.
Aproveitando-se dessa oportunidade, deputados federais elaboraram uma proposta a outro projeto de lei que trata do mesmo assunto, legitimando todo tipo de uso e ocupação de terras indígenas e ferindo frontalmente o que diz a Constituição Federal.
O texto do novo projeto de lei complementar, que tem o número 227/2012, aprovado na Comissão de Agricultura da Câmara dos Deputados, é o que segue:
"Art. 1º Para os fins a que se refere o parágrafo 6º do artigo 231 da Constituição Federal, reputam-se de relevante interesse público da União os seguintes atos e fatos:
I - assentamentos rurais realizados pelo Poder Público, em programas de reforma agrária e colonização;
II – a exploração e aproveitamento de jazidas minerais;
III – o aproveitamento de potenciais hidráulicos;
IV – o uso e ocupação de terras públicas destinadas à construção de oleodutos, gasodutos, estradas rodoviárias e ferroviárias, portos fluviais e marítimos, aeroportos e linhas de transmissão;
V – concessões e alienações de terras públicas localizadas na faixa de fronteiras;
VI – as ocupações de terras públicas na faixa de fronteiras resultantes das formações de núcleos populacionais, vilarejos e agrupamentos urbanos;
VII – os campos de treinamento militar e as áreas destinadas às instalações policiais e militares, das forças armadas e de 2 outros órgãos de segurança;
VIII – os atos que tenham por objeto a legítima ocupação, domínio e posse de terras privadas em 5 de outubro de 1988.
Art. 2º É livre o trânsito de veículos nas vias de comunicação e transporte terrestre e hidroviário que cortem terras indígenas, vedada a cobrança de tarifas ou quantias de qualquer natureza.
Art. 3º É livre o trânsito nas terras indígenas, vedado o impedimento à sua atuação:
I – das Forças Armadas;
II – da Polícia Federal;
III – dos membros do Poder Legislativo da União, dos Estados e dos Municípios;
IV – dos servidores de órgãos governamentais vinculados à saúde e educação dos indígenas.
Art. 4º O usufruto das terras indígenas não se sobrepõe aos interesses estabelecidos pela Política de Defesa Nacional.
Art. 5º Esta lei complementar entra em vigor na data de sua publicação."
Ou seja, se esse projeto for aprovado, haverá tantas exceções ao direito de usufruto exclusivo dos índios sobre suas terras que este passa a ser a exceção, e não mais a regra.
Por exemplo, todas as ocupações não indígenas feitas antes de outubro de 1988 (data da promulgação da Constituição Federal) serão legitimadas, contrariando o que diz a própria Constituição, que considera nulos tais títulos. Se isso ocorrer, não haverá mais nenhuma demarcação de terras indígenas no país, pois todas incidem sobre terras que alguém alega ser dono ou ter a posse, mesmo que seja terra devoluta, e justamente por isso os constituintes declararam nulos os títulos. Além disso, o projeto permite que assentamentos de reforma agrária sejam feitos dentro de terras indígenas, jogando os sem-terra contra os indígenas, e liberando o latifúndio da reforma agrária.
Um dos pontos mais assustadores do projeto é o que permite a "concessão de terras públicas em área de fronteira". Como 100% das terras indígenas são públicas (bens da União), isso significaria, por exemplo, que as TIs Raposa/Serra do Sol e Yanomami, localizadas quase que integralmente na faixa de fronteira, estariam sujeitas a serem leiloadas a fazendeiros ou madeireiros que quisessem explorar o solo ou as florestas.
Em resumo, o projeto desvirtua o estabelecido na Constituição Federal, que exige regra para implantação de obras de infraestrutura importantes ao país (portos, hidrelétricas, estradas, outros), e declara praticamente qualquer atividade como passível de se instalar nas terras indígenas. Seria o esvaziamento completo do art.231 da Constituição, que busca, em essência, garantir aos índios os recursos naturais necessários a sua sobrevivência.