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O golpe da empreita na (falta de) água em São Paulo

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ISA

Confira o editorial do ISA sobre a crise hídrica em São Paulo

Os jornais desta semana foram prenhes de notícias sobre providências para enfrentar a crise no abastecimento de água, que já vitima a população do Nordeste há uns 150 anos, mas que agora aflige a população da Grande São Paulo, de outras mais de cem cidades paulistas e aproxima-se perigosamente das demais regiões metropolitanas do sudeste.

O governador de SP encontrou-se com a presidente da República e pediu R$ 3,5 bilhões em recursos federais para a execução de obras públicas. Por outro lado, os governos do Rio de Janeiro e São Paulo estimam a necessidade de investir outros R$ 8,5 bilhões para assegurar o abastecimento de ambos os estados com as águas do Rio Paraíba do Sul.

Após um debate um tanto quanto enviesado sobre a crise da água durante o processo eleitoral, os governantes – reeleitos – põem-se, imediatamente, a discutir pacotes de obras retirados das gavetas, sem se dispor a convocar a sociedade para debater as melhores formas de enfrentar a questão.

Note-se que as obras agora indicadas como imprescindíveis para o abastecimento de dezenas de milhões de pessoas não constam de nenhum Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que, supostamente, reflete as prioridades do país quanto ao provimento de infraestrutura.

Porém, é estranho que os governantes não se animem a se encontrar para avaliar as implicações para as políticas públicas de estudos científicos recentes que vêm desvendando a dinâmica das chuvas amazônicas que abastece de água a maior parte da América do Sul por meio dos chamados “rios voadores”, que consistem em fluxos gigantes de vapor d’água que se espalham regularmente ao leste da Cordilheira dos Andes, a partir da Amazônia (saiba mais).

O governador também não pautou a situação das nascentes e das matas ciliares no Sistema Cantareira e nas demais regiões do estado. Os governos do Rio e São Paulo não discutiram a qualidade das águas e as condições da ocupação da bacia do Paraíba do Sul. A presidente não comentou o indicativo de aumento de 122% no desmatamento na Amazônia, em agosto e setembro deste ano em comparação com os mesmos meses de 2013, por cima de uma alta de 29% já ocorrida no ano anterior.

Assim como não se discute o provimento da água (quando muito, a sua captação), sequer há informações disponíveis sobre os diversos usuários, de modo a se poder aferir a que graus de privação no fornecimento água devem ser submetidos cada tipo de consumidor (ou ator social), ou que preço deveria ser pago pelos grandes consumidores para poderem continuar utilizando o sistema público de abastecimento num contexto de restrição de disponibilidade hídrica.

Obras devem ser necessárias, mas, na ausência de avaliação qualificada das causas e dimensões da falta de água, acabam transferindo-a de uma região para outra e multiplicando os conflitos pelo seu uso. Qual a lógica disso? Uma maior concentração de gente tem o direito de captar a água que abastece a outros? Pode alguém degradar suas próprias fontes de água para, então, subtraí-la de outras fontes?

Se é óbvia a dimensão técnica da questão, comportando diversas opções de investimento em infraestrutura, emergem da atual crise as dimensões ética, socioambiental e política, que, não sendo consideradas pelos governos, condenam-nos à privação de água, de orçamento, de saúde, de ambiente, de dignidade cidadã.

No sesquicentenário das agruras do povo nordestino, quando já não se sabe se haverá água suficiente no Rio São Francisco para irrigar os canais da sua transposição, o povo do sudeste deve ficar esperto para não ficar refém do mesmo golpe.

Se não quiser “secar”, a sociedade brasileira deve reagir. Precisa se mobilizar, recorrer aos meios de comunicação e exigir que os investimentos públicos possíveis sejam condicionados à implantação de programas de escala que assegurem a disponibilidade de água, recuperem e protejam nascentes e rios, e reflorestem intensivamente regiões essenciais à circulação atmosférica da umidade.

E, tanto mais quanto mais estiver faltando água, a sociedade precisa saber quem mais a consome, quem a desperdiça e quem depende dela para viver. Atribuir responsabilidades diferenciadas a cada ator envolvido, não somente pelas causas, mas também pelas soluções, assim como reconhecer princípios básicos de justiça social no uso da água disponível, são condições para se superar dignamente o problema.