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Expedição Anaconda encerra segunda etapa registrando sítios sagrados nos rios Uaupés e Negro

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Aline Scolfaro

A primeira etapa da expedição foi realizada no início de 2013 e percorreu mais de 800 km pelo curso do Rio Negro, entre Manaus e a foz do Rio Curicuriari, um pouco abaixo da cidade de São Gabriel da Cachoeira. O objetivo foi mapear e documentar trecho da rota de origem e lugares sagrados dos povos indígenas da família linguística tukano oriental.

A experiência foi realizada no âmbito do projeto Mapeo e contou com a participação de diversos conhecedores indígenas dos povos de língua tukano, além de representantes dos ministérios da cultura do Brasil e Colômbia, pesquisadores que trabalham junto aos povos da região e uma equipe de cineastas e cinegrafistas indígenas e não-indígenas coordenada pelo Vídeo nas Aldeias.

Com a continuidade do projeto Mapeo em 2014 e 2015, que além das parcerias entre a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), Instituto Socioambiental (ISA), Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e instituições colombianas, passou a contar também com o apoio da Funai por meio da Coordenação Regional Rio Negro, foi possível viabilizar a segunda etapa da expedição, planejada ainda em 2013.

A viagem da segunda etapa teve início em 27 de janeiro, nas imediações de Camanaus, comunidade localizada um pouco abaixo da sede do município de São Gabriel da Cachoeira. A partir daí a expedição seguiu pelo Rio Negro registrando os lugares sagrados no entorno da cidade de São Gabriel e, mais acima, nas imediações das comunidades de Cabari, São Luiz e Yauawira, onde os participantes foram recebidos com uma bonita festa.

Expedição parou em 11 comunidades

De Yauawira a expedição entrou pelo Rio Uaupés e percorreu cerca de 200 km até o seu destino final, a cachoeira de Ipanoré, fazendo parada em cada uma das 11 comunidades ao longo deste trecho. As narrativas indígenas dão conta de que a cachoeira de Ipanoré é o local onde os primeiros ancestrais dos diversos povos do Uaupés apareceram neste mundo transformados em seres humanos verdadeiros, depois de uma longa viajem subaquática pelos cursos dos rios Amazonas, rio Negro e Uaupés no bojo de uma cobra grande, chamada também de cobra-canoa ou “canoa de transformação”.

No último dia da expedição em Ipanoré foi realizada uma grande cerimônia, onde os conhecedores e bayas (dançarinos/cantores) participantes executaram cantos e danças de kapiwaya, adornados com os enfeites de dança (bahsa buhsa) que anos atrás foram repatriados do Museu do Índio de Manaus, gerido pelos missionários salesianos (saiba mais).

O grupo de conhecedores/narradores participantes da segunda expedição foi praticamente o mesmo da primeira, com algumas exceções. Estava composto de benzedores (kumuas) e pajés (yai) dos grupos Desana, Pira-tapuia, Tukano, Tuyuka, Bará e Barasana, que vivem nos lados brasileiro e colombiano das bacias do Uaupés e Apapóris, mais especificamente ao longo dos rios Uaupés, Papuri, Tiquié e Pirá-Paraná. Também acompanharam a viagem o diretor da Foirn, Nildo Fontes, antropólogos do ISA e Iphan e um grupo de Aimas (Agentes Indígenas de Manejo Ambiental) mais jovens, pertencentes às comunidades do Baixo Rio Uaupés.

Com apoio da Funai, Foirn e ISA, estes Aimas vêm trabalhando desde o início de 2014 no mapeamento dos lugares sagrados da área de abrangência de suas comunidades, em conjunto com os mais velhos, num esforço de fortalecer os conhecimentos tradicionais sobre o território e contribuir para o seu manejo adequado e sua proteção. Para estes jovens foi importante conhecer mais profundamente a história e os cuidados relacionados a estes lugares, com os quais lidam em suas práticas cotidianas – quando vão pescar, tomar banho, lavar roupa, passear etc – muitas vezes desconhecendo quais são as restrições e perigos a eles associados.

Para registrar os lugares sagrados, os conhecimentos e as histórias narradas pelos conhecedores participantes, uma equipe de filmagem do Vídeo nas Aldeias acompanhou a expedição.


Importância dos lugares sagrados

As narrativas dos povos tukano estão repletas de referências geográficas que sinalizam lugares específicos e especiais relacionados à origem do mundo e à viagem dos primeiros ancestrais no bojo da cobra-canoa. Estes lugares são chamados wametisé na língua tukano, que literalmente significa “lugares nomeados”: lugares que possuem história, significados e que guardam as marcas e os poderes dos tempos da origem do mundo e da humanidade.

Há duas grandes categorias de lugares sagrados. Aqueles relacionados com a origem do mundo e de uma infinidade de seres que nele vieram habitar nos primeiros tempos: gente-peixe, gente-onça, cobras grandes, e certos demiurgos responsáveis pela criação e organização das coisas na terra. E há os lugares propriamente relacionados com a viagem da anaconda ancestral, chamados em português de “casas de transformação”.

Estes são pontos especiais ao longo do trajeto da cobra-canoa, onde os primeiros ancestrais vivenciaram certos acontecimentos e obtiveram uma série de conhecimentos, técnicas e artefatos fundamentais para a sua transformação em seres humanos verdadeiros e para a constituição dos diversos povos do Uaupés. Alguns destes lugares coincidem, carregando ao mesmo tempo as marcas dos tempos da origem do mundo e, posteriormente, da passagem da “canoa de transformação”. Todos eles têm uma grande importância para os povos indígenas. E o rico conhecimento que os conhecedores (kumua) e pajés (yai) possuem acerca deles é o que fundamenta desde as práticas xamânicas até as regras sociais e as práticas tradicionais de manejo, com seu baixo impacto ambiental – pesca, caça, extrativismo.

Em 12 dias de viagem foram registrados quase 40 lugares sagrados. Alguns locais constituem na verdade complexos de marcas e sinais que se espalham por pedras, ilhas, praias e serras ao longo de determinados trechos do rio e seus igarapés. Quem conhece empiricamente estes locais e sabe indicar tais sinais são geralmente conhecedores mais velhos das comunidades próximas, que aprenderam de seus pais e avôs as histórias, restrições de comportamento e os perigos relacionados a estes lugares.

Por isso foram estes moradores que guiaram as visitas à maioria dos locais sagrados que a expedição registrou, já que muitos dos benzedores e pajés só conhecem tais lugares em pensamento, das viagens espirituais que fazem em suas práticas xamânicas. Essa interação entre os moradores locais e conhecedores de fora, e entre os diversos grupos participantes, resultou numa troca muito rica de conhecimentos, histórias e reflexões sobre o mundo e suas transformações.

Para os moradores do Baixo Uaupés, que reclamam hoje do enfraquecimento da cultura, da falta de pajés e conhecedores maiores que saibam proteger as pessoas e manejar espiritualmente este mundo, a passagem da expedição, juntamente com o trabalho dos agentes indígenas de manejo ambiental, constitui um incentivo importante para que os jovens se interessem e se preocupem com estas questões.

Mudanças climáticas

Um dos pontos de reflexão nas conversas entre os participantes da expedição e os moradores das comunidades foi a questão das mudanças que vêm ocorrendo de forma cada vez mais drástica no clima e nos regimes de seca e cheia dos rios. Isso porque o maior problema enfrentado nestes 12 dias de viagem foi a subida repentina e fora de época do Rio Negro e do Rio Uaupés, impossibilitando a visualização de muitos locais importantes que só aparecem com o rio seco.

A expedição foi programada justamente para o período de seca no Alto Rio Negro, quando as praias, pedras e cachoeiras ficam completamente à mostra e é possível ver uma série de petróglifos e outras marcas importantes nas paisagens. Lamentavelmente, devido a essa desordem climática, muitos lugares estavam submersos e não puderam ser visualizados e devidamente registrados pela expedição. Os petróglifos de Itapinima, entre as comunidades Trovão e Cunuri, e o buraco de surgimento da humanidade na cachoeira de Ipanoré, dois dos pontos mais aguardados, infelizmente não puderam ser vistos.

Estas mudanças têm afetado diretamente a vida das comunidades e vêm acarretando consequências graves para a agricultura, pesca, caça, coleta, além de enfermidades desconhecidas. Já não é mais possível queimar as roças no tempo certo; as piracemas também não estão mais ocorrendo quando deveriam; as frutas já não dão mais nas épocas em que costumavam dar; os animais de caça estão sumindo ou migrando para outras áreas.

Os conhecedores encaram essas mudanças como decorrência das próprias transformações no modo de vida das comunidades desde o contato com a sociedade dos brancos até o modo irresponsável e destemido como os não-indígenas mexem com a natureza, sem medir os perigos e as consequências da perturbação que provocam. Eles atribuem ainda estas desordens climáticas, que são também desordens cósmicas, ao enfraquecimento dos conhecimentos xamânicos e das práticas rituais responsáveis pela conexão e equilíbrio das energias e das relações entre os seres que povoam o cosmos. Sem pajés, sem os conhecimentos xamânicos, sem as cerimônias relacionadas aos ciclos ecológicos, não há como fazer essa conexão, essa aliança entre os seres, e então todas as relações se desregulam.

Próximos passos

Com o material audiovisual produzido nas duas expedições (mais de 100 horas de filmagens) pretende-se produzir uma série de vídeos para circulação local, com o registro mais integral das narrativas, e um filme para circular para um público mais amplo. O intuito é dar visibilidade para o rico corpus de conhecimento que os diversos grupos do Alto Rio Negro possuem sobre o seu território e a maneira como a história, a memória e a identidade destes povos estão inscritas nas paisagens de um território que se estende além das fronteiras nacionais.

Com a segunda fase do projeto Mapeo, pretende-se ainda elaborar uma proposta de mais longo prazo que possa expandir essas iniciativas de documentação e salvaguarda dos lugares sagrados para outras regiões do Rio Negro. Além disso, a ideia é contribuir também para que a temática entre na pauta dos processos de construção dos Planos de Gestão das Terras Indígenas da região, considerando a perspectiva e as dinâmicas de vida transfronteiriças dos povos indígenas do Noroeste Amazônico.

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