Essa é a versão antiga do site do ISA que ficou no ar até março de 2022. As informações institucionais aqui contidas podem estar desatualizadas. Acesse https://www.socioambiental.org para a versão atual.
Dois novos Projetos de Lei (PLs) que estão tramitando na Comissão de Constituição e Justiça (CCJC) da Câmara atacam diretamente os processos de demarcação de Terras Indígenas (TIs) e a autonomia das comunidades sob seus territórios, fazendo coro à Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215 na ofensiva aos direitos indígenas. A PEC transfere do governo federal para o Congresso a tarefa de oficializar as TIs.
O PL n.º 1216, do deputado federal Luís Antônio Franciscatto Covatti (PP-RS), pretende revogar o Decreto nº 1.775/1996, que regula o procedimento administrativo de demarcação das TIs. A ideia é adequar esse processo à Portaria 303/2013 da Advocacia-Geral da União (AGU), que define como regra geral para as demarcações as condicionantes definidas pelo Supremo Tribunal Federal para a TI Raposa Serra do Sol (RR), restringindo vários dos direitos dos índios sobre suas terras.
Na justificativa do PL, Covatti reconhece o caráter não vinculante da decisão do STF, mas afirma que “a referida decisão passou a traçar um norte para as decisões judiciais supervenientes que vierem a decidir sobre demarcações de terras indígenas. (...) Assim, nada mais apropriado que transplantar o entendimento do STF a uma proposta legislativa”.
O projeto também propõe a instituição do “marco temporal” para definir a ocupação indígena, ou seja, só seriam considerados de posse indígena os locais ocupados pelas comunidades na data da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988. Segundo a proposta, a expulsão dos índios de seus territórios em período anterior a essa data – inclusive na ditadura militar – retiraria o seu direito à demarcação.
Covatti é membro da Comissão Especial da PEC 215 e foi eleito deputado federal, em 2014, com apoio da JBS/SA, a maior exportadora do mundo de proteína animal, que doou 27% do total das doações diretas ao deputado (R$ 200 mil de um total de R$ 737,5 mil declarados). É filho do ex-deputado Vilson Covatti, o mesmo que afirmou, em audiência na Câmara em maio de 2013, que as demarcações de Terras Indígenas só avançariam por cima de seu cadáver. Saiba mais.
Nos artigos 14 e 15 do projeto, o direito dos índios ao usufruto exclusivo de suas terras, garantido pela Constituição, sofre uma série de violações, em benefício de atividades consideradas de interesse “público” ou “nacional”, ficando liberadas dentro TIs a intervenção militar, a expansão da malha viária, a exploração de alternativas energéticas, o resguardo das riquezas de “cunho estratégico”, a construção de redes de comunicação e outras atividades de impacto, a serem “implementados independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou ao órgão tutelar indígena competente”.
“O projeto ‘abre a porteira’ sem consulta para mineração, estradas e assim por diante, para qualquer intervenção que seja de ‘interesse público’. Isso é direcionado”, diz o deputado Nilto Tatto (PT-SP), da Frente Parlamentar de Apoio aos Povos Indígenas. Para ele, o texto fere a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que institui o direito à consulta prévia dos povos indígenas frente aos projetos que incidem em suas terras.
O deputado avalia que o verdadeiro intuito do projeto é paralisar o processo de reconhecimento e demarcação de TIs. “Isso já tem um efeito nocivo, é uma faca no pescoço, pois, além de criar impedimentos no processo de reconhecimento de terras, pode rever as terras já demarcadas. Esse é o objetivo, e já surte efeito do ponto de vista político”, explica.
No que diz respeito ao processo de regularização fundiária, o artigo 25 veda a ampliação de Terras Indígenas já demarcadas, impedindo a correção de limites traçados de forma equivocada e insuficiente para que as comunidades indígenas possam suprir suas necessidades de reprodução física e cultural.
Projeto 1218
O Projeto de Lei n.º 1218, do deputado Victório Galli Filho (PSC-MT), determina que sejam consideradas terras tradicionalmente ocupadas pelos índios apenas aquelas que foram demarcadas até cinco anos depois da promulgação da Constituição Federal de 1988. Pelo projeto, as terras demarcadas após essa data seriam qualificadas como “áreas reservadas aos índios”, para as quais deveria haver indenização retroativa. O texto também ignora o histórico de expulsão e violência a que os povos indígenas foram submetidos e que impediram a sua permanência no território em outubro de 1998 – abrindo caminho à ocupação por terceiros. Mais do que isso, o projeto ainda prevê a revisão e adequação das terras indígenas já demarcadas.
Também membro da comissão especial da PEC 215, Galli defende o pagamento de indenização para os detentores de títulos que incidem sobre as TIs, mas independente da situação da ocupação, ou seja, mesmo que esses títulos sejam ilegais e obtidos de má fé.
Segundo o texto, “ao declarar esses títulos [incidentes em Terras Indígenas] nulos, sem indenizar seus detentores, o Estado brasileiro promove indisfarçável injustiça, pois não honra a posse civil e a propriedade que reconhecera e mesmo criara, provocando grave insegurança jurídica”. O deputado também é autor da emenda que requer a isenção da cobrança de Imposto para as igrejas evangélicas e católicas e os templos de qualquer culto.
“Além de pretenderem paralisar a demarcação de novas Terras Indígenas no Brasil, os Projetos de Lei n.º 1216 e n.º 1218 ainda objetivam a revisão das terras já demarcadas, homologadas e implantadas”, afirma Maurício Guetta, advogado do ISA. “Para além dos evidentes drásticos efeitos práticos que seriam causados com sua eventual aprovação, comparáveis aos da PEC 215, os dois projetos contêm uma série de flagrantes inconstitucionalidades, que vão desde a imposição de entraves insuperáveis para novas demarcações até a inserção de graves limites aos direitos fundamentais indígenas, o que é expressamente vedado pela Constituição”.