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PEC 71: na fronteira entre o bem e o mal das demarcações pendentes de Terras Indígenas

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Márcio Santilli

Em artigo, o sócio fundador do ISA Márcio Santilli analisa a proposta de emenda constitucional em tramitação do Senado que prevê indenizações por títulos incidentes em Terras Indígenas e propõe alterações que possam viabilizar a resolução dos principais conflitos envolvendo essas áreas no centro-sul do País


Desde, pelo menos, 2013, os direitos constitucionais dos índios vêm sofrendo forte assédio da bancada ruralista, autodenominada Frente Parlamentar em Defesa da Agropecuária. Logo após a vitória triunfal na reforma do Código Florestal, em que logrou uma ampla anistia aos desmatamentos históricos e condições desfavoráveis à conservação ou recuperação de florestas em propriedades privadas, deputados ruralistas definiram como objetivo prioritário a fragilização da legislação que protege as áreas protegidas: terras indígenas (TIs), quilombos e unidades de conservação ambiental (parques, reservas etc).

Esta bancada, sentindo-se fortalecida nas eleições de 2014 e contando com 235 deputados, endossou a candidatura de Eduardo Cunha (PMDB-RJ) à presidência da Câmara em troca do desarquivamento de um pacote de emendas à Constituição, mais conhecido como Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, que pretende alterar os artigos 225 (meio ambiente), 231 (índios) e 67 das Disposições Constitucionais Transitórias (quilombos) para transferir ao Congresso a competência exclusiva pela definição de limites das áreas protegidas.

Há centenas de proposições legislativas com intenções similares, entre as quais o Projeto de Lei Complementar (PLP) 227, que, a pretexto de regulamentar o parágrafo 6º do artigo 231 da Constituição, pretende anular os direitos reconhecidos aos índios nos demais dispositivos constitucionais, mas que teve a sua tramitação condicionada ao andamento de propostas anteriores que não interessam aos ruralistas. Assim, eles priorizaram a PEC 215, como uma espécie de míssil legislativo anticonstitucional, para detonar esses direitos.

Porém, no final de maio, a pretensão ruralista foi abalada por um manifesto contra a PEC 215 assinado por 48 senadores (ou 60% do Senado) afirmando, entre outras coisas, que ela sequer teria legitimidade para tramitar no Congresso. Aquela PEC já havia suscitado inúmeras manifestações em contrário, mas o manifesto se contrapôs como um obstáculo político de difícil transposição, já que emendas constitucionais dependem de 60% dos votos para a sua aprovação, tanto na Câmara como no Senado.

Não há notícia de um precedente do gênero, já que, neste caso, o Senado antecipou-se na imposição de um veto político a uma proposição que ainda tramita na Câmara, o que é indicativo
da rejeição entre os senadores à ideia de dedicarem boa parte dos seus mandatos a decidir sobre processos administrativos de TIs, titulação de quilombos e criação de unidades de conservação.

Após a divulgação do manifesto, os ruralistas ficaram indóceis e foram em comitiva ao gabinete do presidente do Senado (que também o subscreveu) para tirar satisfações. Presume-se que Renan Calheiros (PMDB-AL) fez vê-los o sentido inequívoco da rejeição e deve ter indicado o pagamento de indenizações por títulos incidentes em TIs como um caminho mais viável às suas pretensões. Nos termos atuais da Constituição, esses títulos são considerados nulos, em vista do caráter originário dos direitos territoriais indígenas.

PEC 71

Diante da suposta ponderação de Calheiros, os ruralistas reclamaram da paralisia na tramitação no Senado da PEC 71/2011 e sugeriram Simone Tebet (PMDB-MS) como relatora da proposição em plenário, no que foram atendidos. Porém, diante da apresentação de emendas ao texto original, a proposição retornou à Comissão de Constituição e Justiça e poderá retornar à pauta do plenário no início de agosto. A PEC 71 prevê indenizações pela terra para ocupantes retirados de terras demarcadas como indígenas, já que a Constituição, hoje, prevê apenas o pagamento de benfeitorias.

Os ruralistas abominam o excepcionalíssimo dispositivo sobre os direitos indígenas em uma Constituição que tem o direito de propriedade como fundamento principal. Chegam a acusar que tal dispositivo teria resultado de uma suposta conspiração silenciosa na Assembleia Constituinte, com o objetivo de fragilizar a soberania do estado brasileiro sobre aquelas terras ou de criar enclaves vedados à exploração de recursos naturais.

No entanto, historicamente, o dispositivo foi essencial para resgatar, em parte, TIs que haviam sido objeto de todo tipo de violência, usurpação e manipulação durante 500 anos. Só pela nulidade de atos anteriores tornou-se possível restabelecer direitos originários das populações sobreviventes à colonização. Essa disposição emanou do prolongado trato concreto a que o estado brasileiro se submeteu e já se encontrava claramente expressa em nossa Constituição anterior:

“Ficam declaradas a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos de qualquer natureza que tenham por objeto o domínio, a posse ou a ocupação de terras habitadas pelos silvícolas”.

“A nulidade e extinção de que trata o parágrafo anterior não dão aos ocupantes direito a qualquer ação ou indenização contra a União e a Fundação Nacional do Índio” (§s 1º e 2º do artigo 198 do ADCT da CF de 1967)

Vale ressaltar que a nulidade de atos incidentes sobre TIs, além de essencial para aquele resgate, também protegeu os direitos desses povos diante da própria ação do Estado na ditadura militar e depois dela. Foram décadas de isolamento e de invisibilidade da questão indígena e ainda se passaram alguns anos após a promulgação da Constituição de 1988 para que o Estado começasse a se mover pelo resgate daqueles direitos.

Na vigência da atual Constituição, transcorreram quase 30 anos, que constituem um período ímpar nas relações entre os povos indígenas e a sociedade brasileira. Até então, as distâncias entre as aldeias e as cidades eram enormes e os meios de comunicação precários. Poucos indígenas tinham domínio do português e acesso à escolaridade. Não havia organizações indígenas formais e a interlocução entre os índios e o Estado resumia-se ao âmbito da Fundação Nacional do Índio (Funai).

Nesses anos, milhares de comunidades indígenas passaram a acessar e a serem acessíveis à população das cidades mais próximas, estabeleceram relações de parceria com pessoas, empresas, igrejas, prefeituras e instituições de apoio e de pesquisa. Existem, hoje, centenas de índios com formação universitária e milhares acessam o sistema escolar. Há um subsistema de saúde indígena e programas afetos às demandas desses povos em vários ministérios. Há centenas de organizações indígenas, além de vários espaços institucionais de representação de índios nas esferas federal, estaduais e municipais. Apesar da precariedade desses serviços e desses espaços, eles são provas do inédito grau de interação entre os índios, a sociedade envolvente e o Estado nacional, construído sob a vigência do pacto constitucional.

Avançou como nunca o processo de reconhecimento oficial das TIs, especialmente na Amazônia, que ainda mantém vasta extensão não ocupada pelas frentes de expansão e forte concentração da população não indígena nas cidades. Com os índios constituindo a maioria da população rural de extensos municípios amazônicos, o reconhecimento de terras viabilizou a demarcação de territórios capazes de garantir os vários elementos da definição constitucional das “terras tradicionalmente ocupadas”. Da extensão total das TIs reconhecidas no país, 98,5% concentra-se nessa região. Nas demais regiões, onde vivem 40% da população indígena, também se concentra a maior parte das pendências de demarcação. Mesmo dispondo do instituto da nulidade, o processo defronta-se com a densidade da ocupação econômica e demográfica dessas regiões.

Títulos legítimos

Estima-se que dois terços das demarcações de TIs estejam concluídos. O restante encontra-se em etapas diversas do processo. Não é difícil entender porque as pendências estão, hoje, concentradas na metade mais ocupada do Brasil. Sobre ela também se consolidaram direitos históricos (embora não originários) de populações incentivadas a ocupar regiões das quais os índios haviam sido escorraçados. Destacam-se as situações em que o próprio poder público federal titulou e assentou pessoas, dando origem a cadeias dominiais perenes, constituídas por títulos legítimos, adquiridos e transmitidos por proprietários de boa fé.

Nessa situação, o preceito da nulidade, sem o qual teria sido impossível que o processo chegasse até aqui, torna-se um obstáculo. Situações que eram excepcionais há décadas atrás, até por força do relativo desconhecimento que havia sobre os povos e as terras por eles ocupadas, tornaram-se frequentes. Daí que os processos demarcatórios pendentes tenham ido parar, na maior parte, na Justiça. Os conflitos perduram e, além das vítimas que produzem, sua gestão acaba implicando em custos até superiores ao valor das terras em disputa.

Ao acrescentar ao texto do § 6º do artigo 231 uma ressalva ao preceito da nulidade em relação aos títulos de boa fé, A PEC 71 o adaptaria às condições objetivas da etapa final do processo de reconhecimento das TIs, que estará cada vez mais concentrado sobre terras situadas em regiões mais densamente ocupadas e com maior potencial de conflito. Mais do que isso, trata-se de uma questão de justiça para com pessoas que foram induzidas pelo Estado a ocupar terras posteriormente reconhecidas como indígenas por ele próprio.

Porém, o projeto pretende inserir um novo artigo (67-A) nas Disposições Transitórias da Constituição determinando que a indenização de títulos nas demarcações seria cabível a partir de outubro de 1993, ou seja, do prazo de cinco anos previsto no artigo 67 para que a União concluísse a demarcação das TIs. Com isto, pretende uma retroatividade de 22 anos, o que ensejaria uma indústria de indenizações contra a União e um custo impagável pelo erário público. Embora essa retroatividade não implicasse em revisão dos processos demarcatórios, ela esbarraria na irretroatividade determinada pela Constituição e também contribuiria para reavivar conflitos históricos já superados.

Uma coisa seria convencer a população de que vale a pena investir dinheiro público, na forma de indenizações, para evitar injustiças contra terceiros que detém títulos legítimos incidentes sobre terras indígenas nessa etapa final do processo demarcatório. Outra coisa seria pretender que a população pague por interesses contrariados em demarcações passadas, que foram efetivadas de acordo com o marco legal e constitucional existente e cumpriram papel fundamental no resgate histórico dos direitos indígenas após 1988.

Indenizações

Há, ainda, outra questão essencial para a efetividade da PEC 71 que, no entanto, não consta do seu texto atual: a da forma do pagamento das indenizações. Cabe constatar a ineficácia objetiva dos processos indenizatórios administrados pela União sempre que o pagamento dependa de disponibilidade de dinheiro vivo. Por exemplo, veja-se o caso das unidades de conservação, cujos processos de regularização fundiária não caminham e acumulam passivos quase seculares. O mesmo impasse ocorre na regularização das terras quilombolas. Muito mais regulares são os fluxos de pagamento das indenizações referentes a propriedades desapropriadas para fins de reforma agrária, executados com títulos da dívida agrária (TDAs), que dispõem de boa liquidez, mas cuja emissão dependeria de previsão constitucional.

Discute-se, juridicamente, se o pagamento de indenizações por títulos incidentes sobre TIs dependeria, mesmo, de alteração do texto do § 6º do artigo 231 da Constituição. Primeiro, porque a vedação constitucional aplica-se apenas à União e não se estende aos estados, que, em muitos casos, são os protagonistas diretos de titulações indevidas. Segundo, porque ainda que não caiba indenização pela terra, poderia cabê-la pelos danos materiais e morais decorrentes da titulação indevida, que determinou prolongada ocupação de boa fé, responsabilizando o poder público com base no artigo 37, § 6º, da CF.

Já o Supremo Tribunal Federal (STF) tem indicado a via indenizatória para casos em que o governo federal entenda necessário destinar terras já tituladas à ocupação indígena. Para tanto, o STF vem estabelecendo limites temporais à aplicação do artigo 231, a partir dos quais a União deverá recorrer aos demais instrumentos de que dispõe, como o instituto da desapropriação por interesse social, para demarcar ou ampliar os limites de terras já demarcadas.

No entanto, se o que se pretende é a instituição de um mecanismo indenizatório viável, a forma de pagamento precisa estar constitucionalmente prevista, para funcionar. É a garantia de uma forma de pagamento efetiva que justifica a via da emenda constitucional. Por outro lado, na ausência dessa previsão, o mecanismo indenizatório será letra morta, podendo até acirrar conflitos, ao gerar expectativas que não se concretizem. Em outras palavras, a PEC 71 se justifica mais pelo que não consta (mas deveria constar) dela do que pelo que ela expressa.

O objetivo central da proposta é estabelecer o princípio da indenização para títulos legítimos incidentes nas demarcações pendentes, resgatando o direito histórico, embora não originário, dos seus proprietários, facilitando a conclusão do processo demarcatório e restabelecendo as condições de vida de terceiros afetados e, assim, reduzindo os conflitos atualmente existentes. Porém, a introdução de dispositivo retroativo, ao implicar em um custo impagável pela União e injustificável para a sociedade, travaria a consecução desse objetivo central. Da mesma forma, se a PEC 71 não incorporar a previsão para a emissão de títulos para o pagamento das indenizações, comprometerá a sua efetividade. Uma alteração da Constituição que não funcione acabaria por produzir os mesmos efeitos perversos da PEC 215: a paralisação total das demarcações de TIs.

Assim, o presidente do Senado e a relatora terão a responsabilidade de conduzir a tramitação da PEC 71 de modo a não perder a sua oportunidade. Renan Calheiros, a quem já coube a solução de difíceis processos de demarcação enquanto ministro da Justiça, tem agora em mãos a possibilidade de resolver a pendência institucional relativa aos direitos dos índios que reúne o maior grau de consenso entre as partes envolvidas e que, se bem resolvida, propiciará um clima político mais favorável à solução de outas pendências similares. Simonte Tebet, se puder garantir a eficácia do mecanismo indenizatório a ser instituído, estará destinada a solucionar um dos mais angustiantes problemas fundiários do país, que tem no seu estado, Mato Grosso do Sul, o foco mais intenso de conflitos.