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Belo Monte: licença com inadimplência

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Leia o Editorial do ISA sobre a concessão da Licença de Operação da hidrelétrica de Belo Monte (PA)
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Durante coletiva de imprensa do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) sobre a emissão da Licença de Operação (LO) da usina de Belo Monte (PA), ontem (24/11), a presidente do órgão, Marilene Ramos, afirmou que, apesar de não estarem 100% cumpridas as condições socioambientais para a operação da usina, não se pode “penalizar” o Brasil com o atraso de Belo Monte. Na interpretação da presidente, a demora na entrada em operação da hidrelétrica terminaria se refletindo no aumento das tarifas de energia do consumidor brasileiro, que hoje paga seis vezes a mais pela energia poluente fornecida por termoelétricas (veja o vídeo sobre a coletiva no fim do texto).

A desconsideração e subestimação dos custos socioambientais de empreendimentos hidrelétricos permite que ainda hoje se afirme que é muito mais caro queimar gás para produzir energia do que barrar, desviar, secar e alagar um dos rios mais ricos em diversidade cultural e biológica do planeta, o Rio Xingu. Claramente, a forma em que se chega a essa conta tem problemas. Nela não estão devidamente representados os valores de uso e troca que esse rio e sua bacia tem para todos os seres vivos que os habitam.

A Licença de Operação de Belo Monte não é uma surpresa para ninguém. São muitos anos de tensão e questionamentos de um dos processos de licenciamento ambiental mais desafiadores para o Estado e para a sociedade brasileira. Se, por um lado, a autorização ambiental continua exigindo obrigações antigas, definidas e reiteradas em inúmeros documentos sem estar concluídas, por outro lado é preciso reconhecer que também aconteceram avanços no processo de licenciamento.

Entre as condicionantes mais graves que ainda não foram resolvidas, estão a inoperância do sistema de saneamento básico de Altamira; o apodrecimento ou queima de milhares de metros cúbicos de madeira suprimida; a ausência de reparação integral e tratamento isonômico das famílias deslocadas forçosamente, ainda não concluído (um bairro inteiro em Altamira, o “Independente II”, começou a ser cadastrado no dia 23 de novembro, apenas um dia antes da emissão da LO).

A reincidência dessas condicionantes na LO só confirma a dificuldade do órgão de fiscalização de fazê-las cumprir o que ele mesmo define como condição prévia para o empreendimento operar. Pior ainda é a reincidência no descumprimento de condicionantes que deviam ser executadas pelo próprio poder público e que nenhum dos órgãos de controle do governo teve coragem de exigir. É o caso chocante da inadimplência das condicionantes relativas à regularização fundiária das Terras Indígenas (TIs) afetadas por Belo Monte (veja editorial do ISA).

O licenciamento diz respeito à obra como um todo e seus impactos, e não somente às obrigações do empreendedor. O governo federal não pode se isentar de sua responsabilidade no conjunto de ações de mitigação de impactos. A Presidência da República precisa homologar a Terra Indígena Cachoeira Seca. O Ministério da Justiça e o Ministério de Desenvolvimento Agrário precisam coordenar as ações de retirada de não indígenas das TIs Atyterewa, Arara da Volta Grande e Cachoeira Seca antes do acirramento de conflitos por territórios e recursos, previstos para a fase de operação do empreendimento símbolo do PAC.

Dentre os avanços que devem ser reconhecidos, como consequência da luta persistente das populações tradicionais do Xingu, pela primeira vez dentro do processo de licenciamento, mesmo que de forma tardia e tímida, o Ibama reconheceu a existência de grupos sociais que ficaram de fora das compensações do licenciamento. Ribeirinhos, pescadores e extrativistas foram reconhecidos explicitamente como grupos impactados e sujeitos de direitos.

A Licença de Operação da usina incluiu a obrigação da empresa de revisar o tratamento ofertado aos ribeirinhos e moradores de ilhas e beiradões do Rio Xingu de forma a garantir o acesso à dupla moradia, que consiste na manutenção simultânea de duas casas, uma na cidade e outra na área rural, coerente com um modo de vida adaptado à sazonalidade relacionada às cheias e secas do rio. O reconhecimento de que o direito de reparação justa e moradia adequada dos ribeirinhos amazônicos demanda a garantia da dupla moradia, não é mais que o próprio reconhecimento a uma forma tradicional de ocupação do território na Amazônia, importante para garantir a reprodução dos modos de vida dessas populações.

Infelizmente, o reconhecimento tardio dessa condição de moradia e a ausência de acompanhamento das famílias após receberem indenizações em dinheiro dificultam que parte delas negocie novas condições de indenização da remoção.

A licença de operação reconhece impactos negativos sobre as comunidades de pescadores decorrentes da perda de importantes áreas de pesca durante a instalação da usina. A LO, mesmo que de forma imprecisa, pretende garantir o início de uma interlocução direta entre o órgão licenciador, os especialistas em pesca, o empreendedor e os pescadores tradicionais da região para “debater os impactos decorrentes da fase construtiva e de operação da UHE Belo Monte”.

Na autorização do Ibama, é mencionado, pela primeira vez em um processo de licenciamento, a necessidade de estabelecer ao menos uma medida de mitigação destinada aos pescadores e ribeirinhos moradores das Reservas Extrativistas da Terra do Meio. Populações extrativistas e Unidades de Conservação tinham sido excluídas de quaisquer reconhecimento de impactos de Belo Monte por declaração do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), sem nenhum estudo de impacto ambiental que o fundamente e em aberta contradição com os impactos previstos para as TIs vizinhas das Reservas Extrativistas.

A rigor, LO não significa o fim do processo de licenciamento, pelo contrário, significa o inicio do acompanhamento dos impactos gerados pela operação da obra. No caso de Belo Monte, isso é particularmente delicado, já que o arranjo de engenheira da usina envolve o enchimento de dois reservatórios e o desvio do rio em um trecho de 100 km, onde estão localizadas duas TIs (Arara da Volta Grande e Paquiçamba). Os impactos nessas áreas não foram dimensionados com um mínimo de precisão. O monitoramento da fase de operação de Belo Monte precisa ser muito mais robusto e independente do que foi até agora. É indispensável que os analistas ambientais pelo acompanhamento do empreendimento morem na região.

O Ibama e demais órgãos envolvidos precisam interiorizar os aprendizados institucionais do processo e, incorporar definitivamente espaços permanentes de interlocução com as população, sem intermediação da empresa. É preciso estruturar a coordenação regional da Funai, para encarar os desafios de proteção e gestão territorial no contexto de pressão fundiária posterior à desarticulação dos canteiros de obra. Também é preciso fortalecer a diretoria de licenciamento ambiental do órgão para ter recursos que permitam o acompanhamento da execução e efetividade das medidas de mitigação e compensação de impactos.

Não há garantias à sociedade brasileira de que as pendências serão superadas e as novas condições atendidas diante da gravidade das inadimplências com que a operação da usina foi liberada. Isso também fica claro frente à evidência da fragilidade da autonomia dos órgãos fiscalizadores, como o Ibama e a Funai, diante de obras de interesse estratégico do governo, agora que a operação foi autorizada e acabou o poder de barganha do órgão licenciador.

ISA
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