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Em maio deste ano, longe da ebulição política que sacudiu o Brasil com o afastamento da presidente Dilma Rousseff e a posse do interino Michel Temer, o povo indígena Ye’kwana, que vive na região de Auaris, na TI Yanomami, em Roraima, esteve concentrado em outra coisa: traçar caminhos para melhorar suas condições de vida.
Reunidos por uma semana na comunidade de Fuduuwaaduinha, uma das quatro comunidades desse povo no Brasil, os Ye’kwana discutiram temas sensíveis como manejo dos recursos naturais, produção de alimentos, educação escolar indígena e as ameaças a seus territórios. (Veja no mapa ao lado onde fica o Auaris)
O encontro foi resultado da realização de uma das oficinas regionais de elaboração do Plano de Gestão Territorial e Ambiental da Terra Indígena Yanomami (PGTA-TIY) e da oficina de validação de um levantamento socioambiental sobre a região Auaris. As duas oficinas são fruto de uma parceria entre a Associação do Povo Ye’kwana no Brasil (Apyb), a Hutukara Associação Yanomami (HAY) e o Instituto Socioambiental (ISA) (saiba mais).
Realizado pelo pesquisador Ye’kwana Natalino Awaajisha João Rocha, o levantamento socioambiental serviu para alimentar debates sobre gestão territorial na comunidade Fuduuwaaduinha e no futuro fará parte do Sistema de Indicadores Socioambientais para Terras Indígenas (SisTI), que está sendo desenvolvido pelo Programa de Monitoramento de Áreas Protegidas do ISA.
Além dos Ye’kwana de Fuduuwaaduinha, o encontro contou com a participação de lideranças indígenas das aldeias Tajäde’datonha, Kudatanha e Wachainha, além de representantes da Apyb, da Hutukara, da Frente de Proteção Etnoambiental Yanomami-Ye’kwana (FPE-YY/Funai), do Distrito Especial de Saúde Indígena Yanomami-Ye’kwana (DSEI-YY/Sesai) e assessores do ISA.
Da substituição dos alimentos industrializados na merenda escolar ao que deve ser cantado no momento do plantio das roças, todas as discussões do encontro foram sintetizadas em uma carta , que aponta os temas de maior preocupação para as comunidades Ye’kwana. Os cuidados com o manejo dos recursos naturais está entre eles.
Desde tempos imemoriais, as comunidades cultivam plantas cuja origem está na primeira maniva (ädeeja) trazida dos céus por um ancestral e plantada no coração do território Ye’kwana, o tepui Marawaka, na Venezuela. Por isso, as roças, a alimentação e a produção dos alimentos são centrais para os Ye’kwana; deles dependem tanto as comunidades em Auaris, quanto aqueles que vivem na cidade de Boa Vista, capital de Roraima.
Para ampliar a oferta de alimentos locais na dieta das famílias, os Ye’kwana avaliam que é preciso manejar os recursos naturais e aumentar a disponibilidade de caça, pesca, frutas e áreas boas para o roçado. E para isso, não basta planejar e reflorestar: é preciso cantar e valorizar os conhecimentos tradicionais.
Um dos mais respeitados conhecedores e o mais antigo xamã Ye’kwana, Vicente Castro, explica por quê: “A gente não pensa essas coisas do desmatamento. Agora a gente está aprendendo com vocês [não indígenas] como a gente planeja isso. No nosso costume, existem os donos da natureza que cuidam; a gente só tem que cantar para eles, que eles cuidam. Se a gente pensar em reflorestar a mata, a gente pensa que quem plantou primeiro a natureza foi Waddu. Por isso, a gente faz o canto [e], através dele, para plantar. Nosso pensamento é forte. Quando a gente canta e pensa para as coisas ficarem boas, isso acontece”.
A merenda escolar, constituída basicamente por enlatados e conservas, também tem contribuído para a entrada de alimentos industrializados nas comunidades Ye’kwana, fazendo com que as crianças se acostumem com a comida dos yadaanawichomo (não indígenas) e passem a desvalorizar os alimentos produzidos em suas roças.
Por isso, uma das propostas levantadas no encontro é que a própria comunidade de Fuduuwaaduinha, com suas 67 roças e mais de 47 variedades de produtos agrícolas, forneça os alimentos para a merenda escolar. A liderança local Rui Ye’kwana defende: “Merenda de fora enfraquece o que a gente produz aqui; seria substituição de hábitos alimentares. Os produtos têm que ser daqui, sem química, sem agrotóxico”.
Paralelamente, a Apyb e a Associação dos Pais e Mestres da escola Apolinário Gimenes tentam viabilizar o acesso ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), junto aos órgãos responsáveis, com o apoio do ISA. Mas com a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), responsável por programas como o PNAE, a iniciativa pode estar ameaçada.
Além dessa, persistem para os Ye’kwana várias preocupações sobre o contexto político atual, em especial a ameaça da expansão de garimpos ilegais para seu território - um velho fantasma que pode se tornar maior com a posse do governo interino e sua ligação com Romero Jucá, ex-ministro do Planejamento. O tema também foi discutido durante o encontro.
Manejar é essencialmente envolver os conhecimentos desse povo na garantia de uma boa vida, por isso foram apresentadas também propostas sobre o tempo dedicado aos saberes não indígenas na escola e sobre o lugar de se aprender os conhecimentos tradicionais.
A fala de Rui Ye’kwana foi emblemática: “Nossa cultura é muito valiosa, mas não estamos segurando. Nossos filhos estão vindo só na escola, aí não sobra tempo para nós ensinarmos nossos costumes para nossos filhos. Eu sabia o que fazer dentro do mato, eu tinha trilha, caminhos. Por que que eu deixei isso? Porque meus filhos entraram na escola e não me acompanham; fiquei sozinho. Esse conhecimento da escola está mais forte”.
Já Reinaldo Wadeyuna Luiz Rocha, que é presidente da Apyb e também professor, chama a atenção para o papel dos professores na valorização dos conhecimentos Ye’kwana: “Nós não fomos preparados para aprender os rituais que acontecem, como construir instrumentos musicais que têm na nossa cultura, tão valiosos. Estamos colocando isso diante dos alunos também”. Por conta desse afastamento entre os conhecimentos indígenas e os não indígenas, a carta do encontro traz propostas como garantir que os conhecimentos Ye’kwana tenham maior espaço na escola e construir alternativas para que haja maior interação entre jovens, professores e conhecedores, dentro e fora do ambiente escolar – para fortalecer sua circulação, tal como está planejado no Projeto Político Pedagógico das escolas Ye’kwana, aprovado em maio deste ano.
A região de Auaris, na TI Yanomami, é habitada pelos povos Sanöma, um dos subgrupos Yanomami, e Ye’kwana e a população total, segundo a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), em 2015, chega a mais de três mil pessoas. Com a abertura de uma pista de pouso na região em 1965, a presença constante de missionários, a instalação do 5º Pelotão Especial de Fronteira, e em tempos mais recentes, a criação de um Polo Base do Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami e Ye’kwana (DSEI-YY), Auaris passou a sofrer com um processo penoso de sedentarização e superpopulação.
A concentração populacional no entorno dessa infraestrutura tem acarretado na falta de caça e pesca e na diminuição de áreas adequadas ao plantio de roças, fazendo com que Auaris tenha hoje alguns dos piores indicadores de saúde da TI Yanomami, com o maior índice de desnutrição infantil e o maior número de óbitos entre crianças menores de 1 ano. Mas as comunidades Sanöma e Ye’kwana têm vivenciado esses problemas de modo distinto. Para os Ye’kwana, o principal problema está nas doenças advindas do consumo de alimentos industrializados, comprados com os salários de professores e agentes indígenas de saúde e com o dinheiro proveniente de benefícios sociais.
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