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Firmado no final de 2015, em Paris, o novo tratado internacional sobre mudanças climáticas pode começar a valer ainda este ano. A expectativa inicial era que isso só ocorresse em 2018. Na semana passada, mais 31 países ratificaram o pacto. Uma semana antes, o Brasil fez o mesmo, incluindo-se entre as primeiras nações que mais poluem a aderir a ele, pouco depois de EUA e China.
Para entrar em vigor, o Acordo de Paris deve ser referendado por ao menos 55 dos países responsáveis por 55% das emissões globais de gases de efeito estufa. Juntas, as 60 nações que já formalizaram sua adesão respondem por 47% das emissões planetárias.
No Brasil, seguem as polêmicas e incertezas sobre o cumprimento das metas nacionais, agora transformadas em lei: uma redução de 37% das emissões, em 2025, e de 43%, em 2030, em comparação aos níveis de 2005. Desde a divulgação do compromisso brasileiro, cientistas e ambientalistas avaliaram que, apesar de ser avaliado como ambicioso no contexto internacional, ele seria modesto considerando o cenário interno e o potencial do país.
Na sexta (23/9), veio a público a revisão da taxa oficial do desmatamento na Amazônia: entre 2014 e 2015, foram destruídos 6.207 km2 de floresta, e não 5.831 km2, como divulgado em novembro. Assim, o acréscimo em relação a 2013-2014 foi de 24%, e não de 16% – o maior aumento em quatro anos. Segundo o jornalista Maurício Tuffani, a informação estava retida no governo desde junho (saiba mais). Parte significativa de nossas emissões origina-se da destruição da floresta.
Dias antes da ratificação pelo governo, o Observatório do Clima (OC) – maior rede da sociedade civil brasileira sobre o assunto, da qual o ISA faz parte – divulgou uma análise mostrando que a queda das emissões brasileiras pode ser maior e que, se o governo não atualizar as referências que balizam nossas metas, acabaremos aumentando, e não reduzindo, as emissões em termos absolutos. Na semana passada, o OC voltou a criticar a atuação governo no tema.
“A minha posição é que nos esforcemos para aumentar nossa meta e encurtar os prazos, aumentar nossa ambição”, disse o ministro do Meio Ambiente, Sarney Filho, na cerimônia de ratificação. Segundo o ministério, em novembro deverá ser divulgado um primeiro esboço da estratégia de implementação das metas brasileiras e elas serão discutidas com a sociedade civil e empresários até meados de 2017.
O ISA entrevistou quatro dos maiores especialistas brasileiros para comentar os desafios do país pós-ratificação. Eles reforçam que o Brasil vai caminhar, nos próximos anos, no fio da navalha entre as pressões, de um lado, dos segmentos mais conservadores da indústria da energia, que apostam nos combustíveis fósseis e nas grandes hidrelétricas da Amazônia, e, de outro, da sociedade civil, pesquisadores e parte do empresariado, que lutam por um modelo de desenvolvimento de baixo carbono. Isso sem falar no choque de realidade dos próprios impactos das mudanças climáticas, que não pouparão o país, a exemplo do que a crise hídrica de São Paulo já mostrou.
Leia abaixo os principais trechos das entrevistas.
ISA – Qual o maior desafio para o Brasil implementar suas metas de redução de emissões?
Tasso Azevedo – Com o que está proposto, não vejo grandes desafios. As metas de energia não são nada mais do que já vinha sendo trabalhado. As metas do desmatamento são aquém do que deveria ser: desmatamento ilegal zero só na Amazônia. Aquele que é apontado como o desafio principal, a recuperação [florestal] de 12 milhões de hectares, de fato, se deixar para regeneração natural, eles serão atingidos de forma relativamente fácil. Nenhuma das coisas que assumimos como compromissos são bichos de sete cabeças. A não ser que se considere que, por exemplo, no caso da recuperação, se pretenda fazer restauração mesmo [plantio], e não só regeneração natural.
Comparando internacionalmente, o mundo pode achar que a meta brasileira é ambiciosa, mas, quando olhamos para dentro do país, sabemos que é pouco. A percepção não é de que o Brasil estaria fazendo menos do que deveria em relação ao mundo, mas menos do que deveria em relação àquilo que pode e àquilo que precisa ser a contribuição de um país como o Brasil, junto com todos os outros, para que alcancemos 2 ºC ou 1,5 ºC [de aumento máximo da temperatura global]. Nosso desafio é tomar consciência e nos comprometermos a acelerar a transição [para uma economia de baixo carbono] com muito mais ambição do que o que está colocado atualmente.
ISA - O antigo governo avaliava que a meta de recuperar 12 milhões de hectares de vegetação nativa seria cumprida mais ou menos facilmente. Qual a sua avaliação?
TA – São duas coisas que, aparentemente, quando se fala, parecem estar juntas, mas não estão. Quando se fala em desmatamento ilegal zero, compensar as emissões do que for desmatamento legal, não se está necessariamente dizendo que a cobertura florestal será estabilizada. Se quiser dar um sinal claro para sociedade, é preciso dizer qual cobertura florestal mínima vamos ter em cada bioma. Então, para se desmatar um hectare, teremos outro que será recuperado. O satélite Terraclass está indicando que desmatamos algo como 14 milhões de hectares, entre 2004 e 2014, na Amazônia, mas temos sete milhões de hectares em recuperação. Quer dizer que desmatamos sete milhões de hectares à toa. Podemos chegar em 2020 com bastante desmatamento e conseguir cumprir a meta de 12 milhões de hectares em recuperação, que seriam basicamente essa recuperação que acontece em áreas abandonadas. Outra coisa é maximizarmos o benefício econômico, social e ambiental dessa recuperação. Aí, é plantio mesmo. Definimos o lugar onde é prioritário plantar, por exemplo, Áreas de Preservação Permanente, Reserva Legal, área com aptidão florestal. O desafio é fazer 12 milhões de hectares de forma proativa e maximizando esses benefícios.
ISA – O processo periódico de revisão das metas pode implicar pressão para que o Brasil torne suas metas mais ambiciosas, dado a importância e o tamanho do país?
TA – De fora para dentro, será muito pouco, dado que o grau de ambição dos outros países deixa mais a desejar do que o do Brasil, comparativamente. Mas acho que essa pressão e desejo de maior ambição vai e deve partir principalmente de nós mesmos. Precisamos que o Brasil lidere pelo exemplo para que outros possam fazer mais. O outro lado é que o mundo está andando a passos largos em algumas direções em relação à economia de baixo carbono. Teremos alguma pressão para isso. Por exemplo, a velocidade com que estamos lidando com a energia solar ou a eletrificação do transporte é muito aquém do que está acontecendo no mundo. O mundo está caminhando para eletrificar o transporte, reduzir e regular ao máximo, por exemplo, veículos a diesel. Enquanto isso, estamos querendo permitir no Brasil veículos a diesel de passeio. Se você não se posiciona para estar na ponta, receberá pressões para servir de depositário de coisas obsoletas ou que estão acabando em outros lugares. Outro tema é que, se a eletrificação começa a avançar e sua curva de custos começa a cair, se não estivermos prontos, seremos só consumidores de tecnologia e importadores, ao invés de protagonistas nesse novo mundo de baixo carbono.
ISA – Concorda com a avaliação de que a meta brasileira de redução de emissões é ambiciosa em termos internacionais, mas pouco ambiciosa em termos nacionais?
Carlos Nobre – As negociações internacionais são um jogo de xadrez. Isso tem de ser julgado de forma realista. O Brasil tem potencial? Tem potencial para fazer o que todos os países terão de fazer se quisermos manter o aumento de temperatura abaixo de 2 ºC. Mas seria irrealista esperar que, no primeiro movimento desse complexo tabuleiro de xadrez, o Brasil já colocasse os números que seriam necessários, porque os outros países não o fizeram. Não estou falando que isso é o melhor para o mundo. Só estou refletindo o que é a diplomacia internacional. Nesse sentido, as metas brasileiras foram arrojadas.
ISA – Qual sua avaliação da meta de desmatamento?
CN – Dizer que vamos zerar o desmatamento ilegal é o mesmo que dizer que se vai zerar o número de mortos nas estradas provocadas por quem dirige bêbado, zerar os homicídios nas cidades. Nenhum país consegue zerar a ilegalidade. Isso me parece um pouco naïf. Acho que a meta deveria ser ampla: buscar zerar o desmatamento. Aí haverá ilegalidade e você busca coibi-la. Isso foi mal colocado.
A meta deveria ser contrair a área da agricultura brasileira. Temos 300 milhões de hectares de área agrícola e pecuária. Em 2030, quanto queremos ter? 260 milhões, 250 milhões? Essa deveria ser a meta. Nela, estariam embutidos os 12 milhões de hectares de área restaurada e os 15 milhões de hectares de pastagens recuperados. Nossa meta deveria ser aumentar nossa produção de alimentos e bioenergia em tantos porcento até 2030 e, ao mesmo tempo, contrair a área para agricultura e pecuária em tantos porcento. Para pecuária, essa conta foi feita. A Embrapa fez a conta de que é possível aumentar em 25% a produção de proteína animal, principalmente de bovinos, reduzindo em 35% a área de pecuária. Acho que o Brasil poderia ter uma meta arrojada das emissões de uso da terra serem negativas, caminhando para não alterar ecossistemas não perturbados e para restauração de áreas não apropriadas para a agricultura desmatadas. O Brasil seria um sumidouro de carbono. Eu colocaria as metas de forma diferente do que o que o Brasil fez – ainda sem desmerecer que as metas do país são mais arrojadas que as da grande maioria dos países.
ISA – Algumas pessoas alegaram que nossa meta foi construída a partir de uma tendência já mais ou menos estabelecida. Esse seria um dos critérios para dizer que ela não é ambiciosa. Como o senhor vê esse argumento?
CN – Acho que não é esse o desafio. As ONGs ambientalistas estão pondo a lente no foco errado. O maior desafio é implementar essas metas. Acho que elas são difíceis de implementar. Se começarmos, antes mesmo de sinalizar uma trajetória de implementação, a só criticar o elemento balizador da construção dos números acho que perdemos o foco. O foco tem de ser com que velocidade vamos quebrar os paradigmas e ter um pouco mais de confiança para atingir essas metas e construirmos as pontes para sermos mais ambiciosos
ISA - Quais os desafios e oportunidades que se abrem para o Brasil na adaptação às mudanças climáticas?
CN – O mais preocupante é adaptação para manter a biodiversidade e a sociobiodiversidade. Essa é uma preocupação grande do ISA. Se o clima muda muito radicalmente e não há mitigação, e mudam as condições ambientais, a sociodiversidade fica afetada, porque o modo de vida das populações tradicionais será afetada. Essa é uma grande incógnita, ainda que a possibilidade de adaptação, mesmo que por migração, exista em teoria. Mas para grande parte das espécies, especialmente as endêmicas – que na biodiversidade brasileira representam até 15% ou 20% do total – o destino é preocupante. Não há conhecimento hoje que diga quais são as práticas e os caminhos de adaptação, se definirmos globalmente que queremos manter a máxima biodiversidade do planeta, que não queremos perder espécies. Para isso não há soluções, a não ser manter bancos de germoplasma em algum lugar, por milhares de anos. Como nós somos um país de "G1" em biodiversidade, esse desafio tem um reflexo muito grande no Brasil. Este é um desafio em que a ciência tem avançado muito lentamente e não tem conseguido propor soluções. Os estudos recentes mostram que, com 4 ºC de aquecimento, não conseguiríamos manter 25% das espécies do planeta. Elas seriam perdidas. Para poucos graus, há uma opção de adaptação. Para um número maior de graus, deixa de ser uma opção.
ISA - Quais são os desafios para implementar o Acordo do Clima no Brasil?
Carlos Rittl – Isso requer trazer para o centro do planejamento e da construção de uma visão de desenvolvimento de longo prazo as mudanças climáticas, tanto do ponto de vista da redução de emissões, como da adaptação e aumento da nossa resiliência. Estamos muito longe de ter isso ou de estar nesse caminho aqui no Brasil. Temos um conjunto interessante de políticas, incluindo a Política Nacional de Mudanças Climáticas e outras políticas setoriais associadas a ela, mas esse conjunto de políticas é marginal quando pensamos nos últimos anos e em relação aos grandes planos e investimentos voltados para o desenvolvimento. Como a gente promove essa transição? Isso não esteve nem no discurso da presidente Dilma, nem do presidente Michel Temer. E esse é o desafio que temos agora.
ISA - Qual seria o papel do governo?
Precisamos condicionar o investimento público a critérios de desenvolvimento de baixo carbono, reduzir os investimentos naquilo que gera emissões e impactos, promove o desmatamento, que não está associado ao baixo carbono ou à eliminação progressiva das emissões; onerar os setores mais emissores e desonerar os que são mais eficientes, menos emissores; e privilegiar aquilo que vai promover redução de emissões com benefícios econômicos.
ISA - Existe a clareza necessária do que cada setor vai ter que fazer?
CR – Traduzir o acordo para o chão, para o país, requer mudanças no nosso arcabouço jurídico, em políticas, e não apenas na política de clima. Como as metas podem ser modificadas a qualquer instante, sendo que essa modificação só pode ser para maior ambição, precisamos criar um espaço na nossa legislação, um ajuste na Política Nacional de Mudanças Climáticas, na lei 12.187/2009, para que esses compromissos sejam incorporados à nossa legislação automaticamente.
ISA – Que oportunidades você vê para o Brasil, no âmbito do Acordo do Clima, para que possamos avançar em relação à adaptação aos impactos das mudanças climáticas?
CR – Continuamos olhando para o clima dos próximos 30 anos como se ele fosse se comportar como nos últimos 30 anos. Não olhamos quais são os potenciais impactos, mesmo no melhor cenário de mudanças climáticas, sobre o regime hídrico da Amazônia, por exemplo. Temos áreas muito vulneráveis, inclusive áreas onde a expansão hidrelétrica é prevista, como a Bacia do Tapajós. São áreas que podem perder 20% a 30% da vazão dos seus rios em determinados momentos nas próximas décadas pela redução da incidência de chuvas. É necessário que a gente adapte nosso planejamento energético a essa condição de um clima mais complexo no futuro.
ISA – Como está a questão da adaptação no Brasil?
JM – A ideia era que não haveria recursos para adaptação, mas depois de todos os desastres naturais – todos os verões temos mortos por chuvas e as pessoas continuam sendo afetadas – a adaptação passou a ter mais interesse. Tanto que a comunidade científica e o governo acabaram de lançar o Plano Nacional de Adaptação. Como um primeiro documento, ele trabalha mais a parte de impactos. Primeiro, é preciso identificar ao que deveremos nos adaptar. Mas para mostrar aos governos que o perigo está aí, imediato, essa é a parte complicada. Se o governo não reconhece esse problema, ninguém vai querer fazer nada e a adaptação é algo que pode custar. Mas no longo prazo o investimento em adaptação se paga sozinho. A adaptação está numa posição melhor agora do que há cinco ou dez anos atrás. Os centros de pesquisa estão trabalhando pesado nisso.
ISA - Qual o maior desafio para o Brasil na área de adaptação?
JM – Primeiro, reconhecer o problema. Reconhecer que pessoas morrem como consequência de uma mistura de coisas. Quando há um deslizamento de terra, qual a combinação letal? Há pessoas morando em áreas de risco. Quem colocou essas pessoas lá e permitiu que estivessem em área de risco? Vem uma chuva, que pode ser intensa, mas não é aquela que vem de 100 em 100 anos, e ela deflagrou um desastre. A terra estava solta, sem floresta e produziu um deslizamento de lama e matou pessoas. Se essas pessoas soubessem que essa área é de risco e houvesse uma política de limitação de áreas de risco, o governo estaria adaptado à situação. Poderia chover tudo que quiser, mas não haveria pessoas em perigo. Isso é adaptação. Mas isso ainda está começando a ser feito. Hoje, falamos em evitar um aquecimento maior do que 2 ºC. Se tivermos um aquecimento maior, com o que os modelos projetam, não há adaptação possível.
ISA - O que chama mais a atenção nos estudos recentes sobre impactos previstos das mudanças climáticas no Brasil?
JM - Passando de um aumento de 4 ºC da temperatura média do planeta, a geografia da atual agricultura muda totalmente. Não haverá áreas adaptáveis com condições adequadas para a agricultura. Isso pode gerar uma crise alimentar.