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O inimigo mora ao lado

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Comunidade Guarani protocola, hoje, sua defesa no STF contra pedido de anulação da demarcação da Terra Indígena Morro dos Cavalos (SC)
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As 44 famílias Guarani Mbya e Guarani Nhadeva da Terra Indígena (TI) Morro dos Cavalos (SC) aguardam seu futuro ser decidido pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). A comunidade protocola, hoje (14/10), na corte, a petição que contesta, linha a linha, os argumentos utilizados na ação movida pelo Estado de Santa Catarina na tentativa de anular o processo de demarcação da área, que se estende por 23 anos (veja linha do tempo no fim da reportagem).

Os 1988 hectares da TI ficam no município de Palhoça, a 30 km da capital, Florianópolis. O Ministério da Justiça publicou a portaria declaratória em 2008, reconhecendo Morro dos Cavalos como terra de ocupação tradicional Guarani. Para concluir o processo, faltava a homologação da Presidência da República. Antes da canetada final, Santa Catarina entrou com a ação, em 2014.

“Eu nasci aqui. O fato de eu ter nascido aqui tem de contar”, diz Hyral Moreira, 40 anos, uma das lideranças da comunidade indígena e prova viva do equívoco da ação.

O chamado “marco temporal” é um dos argumentos usados por Santa Catarina para questionar a demarcação. Trata-se de um critério pelo qual os índios só teriam direito à terra reivindicada caso estivessem nela em 5 outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Esse dispositivo foi definido no julgamento da TI Raposa Serra do Sol (RR), finalizado pelo STF em 2013. Na época, os ministros resolveram que a decisão valeria apenas para aquele caso e não era “vinculante”, ou seja, não tinha aplicação obrigatória em outros julgamentos. Na prática, porém, o “marco temporal” tem sido usado para tentar anular outras demarcações, o que ameaça centenas de outras TIs (saiba mais).

Em maio, o ministro do STF Dias Toffoli negou o mandado de segurança dos proprietários rurais da região contra a portaria declaratória de Morro dos Cavalos (leia aqui). “O ministro relator [do mandado] no Supremo já adiantou que o ‘marco temporal’ era um argumento que nem seria cabível, porque naquela área estava comprovada a presença indígena desde sempre”, afirma a procuradora da República em Santa Catarina Analúcia Hartmann.

O levantamento fundiário realizado, em 2002, pela Fundação Nacional do Índio (Funai) reúne mais provas da presença indígena ininterrupta. O documento faz parte do processo de demarcação e reúne depoimentos dos moradores não indígenas. Eles são unânimes: atestam que “sempre souberam” da ocupação indígena, incluindo os posseiros que passaram a residir na região em meados de 1988.

“Considerar que só poderiam ser demarcadas terras em que os índios estivessem em outubro de 1988 equivale a negar e esquecer as seculares violências praticadas contra os povos indígenas, em especial durante a ditadura militar”, argumenta Juliana de Paula Batista, advogada da comunidade. “Até 1988, não havia qualquer garantia de segurança para estar e permanecer em um território. Se a sobrevivência física e cultural dos indígenas depende de seus direitos territoriais, anular processos de demarcação com base no ‘marco temporal’ significa autorizar remoções e a assimilação cultural forçadas”, alerta.

Na ação, o Estado de Santa Catarina afirma ainda que os Guarani representam um “bolsão de pobreza inadmissível”. A solução proposta, porém, é anular a demarcação e expulsar os índios.

"Eu achei que tinha chegado o meu fim. Mas não foi"

Aliada à lentidão da União para finalizar a demarcação, a postura do Estado de Santa Catarina encorajou a ocupação irregular da área na última década. O quintal de um posseiro acabou de ser terraplanado e abriga um ferro velho.

"Minha filha abriu a porta e saiu correndo e dizendo: ‘mãe tem gente atirando na nossa casa’. Eu não acreditava porque todo esse tempo a gente tinha notícia do que acontecia no Mato Grosso do Sul e eu pensava: ‘não, aqui não pode acontecer este tipo de coisa’. Meu filho de 10 anos estava dormindo no quarto. Minha filha estava apavorada, gritando e eu pensei: 'eu não vou sair, se eles quiserem me matar, vão ter que entrar aqui dentro'. Eu achei que tinha chegado o meu fim. Mas não foi. Aí a gente chamou a polícia, fez ocorrência, mas nunca encontramos o autor dessas ameaças."

Kerexu Yxapyry

“É melhor ficar longe, a gente não fala com eles, vamos resolver nossos direitos na justiça”, responde Elieser, liderança Guarani Mbya, quando questionado sobre como é a relação com os “vizinhos”.

A distância não é à toa. Kerexu Yxapyry, professora e antiga cacique da aldeia, conta que, cada vez que o processo de demarcação avançava, carros passavam atirando e ameaças de morte eram feitas por telefone, carta ou recado. Ela já registrou cinco boletins de ocorrência.

O ataque mais grave ocorreu, em outubro de 2015, quando casas da comunidade foram alvejadas por tiros, dias após a aprovação, numa comissão da Câmara dos Deputados, do relatório da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215. O projeto pretende transferir do Executivo para o Legislativo a palavra final sobre as demarcações de TIs, entre outros dispositivos que visam paralisar de vez esses processos.

Tratamento desigual

Uma parte dos 84 mil hectares do Parque Estadual Serra do Tabuleiro, a maior Unidade de Conservação (UC) estadual, fica dentro da TI. A legislação brasileira só permite a ocupação humana em parques no caso de sobreposição com TIs, como acontece em Morro dos Cavalos.

Apesar disso, terrenos cercados com arame farpado, exibindo placas de "propriedade privada", são comuns no local. A sinalização foi colocada por ocupantes que, assim, podem ser considerados duplamente ilegais.

A lei diz que o Estado de Santa Catarina deveria proibir a presença dos moradores não indígenas e providenciar sua retirada. Mas a ação judicial pede exatamente o contrário, que a demarcação da TI seja anulada e que os posseiros já retirados e indenizados pela União retornem.

“É tudo tão sem fundamento e absurdo. Por que o governo do Estado só agora está tomando uma atitude e, ainda por cima, escolhendo qual parcela da população ele deve defender?”, questiona Hartmann. “Não existe legitimidade do Estado para defender uma parte da população, se é que é isso que ele defende, contra outra parcela da população, que são os indígenas. Isso, preliminarmente, já poderia decidir o processo”, afirma.

No meio do caminho, sempre teve uma Terra Indígena

O barulho da rodovia BR-101, a poucos metros da porta da escola da TI, não espanta os alunos. A sala de aula segue com salas cheias de crianças que resistem ao calor das portas e janelas fechadas para poder ouvir a professora que fala apenas em Guarani.

As mulheres também fizeram do local um ponto de convivência para a produção do artesanato. Elas vendem, em barracas improvisadas, na beira da estrada, em frente ao seu Tekoha (território tradicional), resistindo, como os Guarani fazem em vários lugares do Brasil.

Placas instaladas pelo Departamento Nacional de Infraestrutura e Rodagens (DNIT), dos dois lados da estrada, deixam claro a qualquer motorista que ele está cruzando uma TI.

Batizada de governador Mário Covas, a BR-101 é uma rodovia federal que começa no Rio Grande do Sul e segue até o Rio Grande do Norte. Em Santa Catarina, cortou ao meio Morro dos Cavalos. A rodovia foi erguida pelo Exército, nas décadas de 1960 e 1970, durante o governo militar. Relatos de antigos moradores da região descrevem a truculência que marcou a obra.

Registros de violência contra os índios também foram resgatados nos Estudos de Impacto Ambiental (EIA), assim que o governo iniciou a duplicação da estrada, em 2005. Pouco depois, faltou dinheiro para seguir com o empreendimento, que demandava orçamento de quase R$ 7 milhões, segundo o DNIT.

Após mais de uma década, em setembro de 2016, o DNIT finalizou uma parte da duplicação, com a construção da quarta pista. Diferentemente da época dos militares, a duplicação teve projeto básico ambiental indígena aprovado pelos índios e pela Funai (saiba mais).

Os Guarani relatam que a duplicação da rodovia auxiliou o processo de retirada de ocupantes irregulares da TI. O pagamento de indenizações a ocupantes não indígenas que estavam na beira da estrada foi definido como uma das compensações ambientais. Entre eles, estava um restaurante cujo estacionamento era usado constantemente por caminhoneiros para descanso. Os motoristas assediavam mulheres e crianças indígenas, causando grande transtorno.

Após o pagamento da indenização, os moradores não indígenas saíram de forma pacífica, em meados de 2015, e os índios ocuparam as casas construídas indevidamente em seu território.

A construção de dois túneis através do Morro dos Cavalos, que dá nome a área, é a última grande obra na duplicação. O processo está registrado no site da BR-101 e em documentos públicos, mas foi totalmente ignorado pelos autores da ação judicial do Estado. Nela, eles afirmam que a demarcação de Morro dos Cavalos impediria a duplicação da rodovia.

Em nota à reportagem do ISA, o DNIT desmente o Estado de Santa Catarina, informando que não há qualquer problema com a comunidade Guarani. O órgão diz ainda ter feito ajustes no projeto, após realizar “diversas consultas junto a Comunidade Indígena”. Uma das compensações definidas é a construção de casas e da escola morro acima, para que a comunidade fique um pouco mais afastada da rodovia.

O DNIT diz ainda que, até o momento, não há previsão para início dos trabalhos porque “não há recursos liberados”. A obra faz parte do PAC e tem orçamento de R$ 400 mil. Mais de 30% dos projetos de infraestrutura no país estão paralisadas pelo mesmo motivo.

“Na verdade essa obra toda atrasou demais, como toda obra em estrada federal. Nesse caso, eles arranjaram um bode expiatório, que foi a comunidade indígena”, afirma Analúcia Hartmann.



Letícia Leite
ISA
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